sábado, 27 de junho de 2009

COMO A AVE QUE VOLTA AO NINHO ANTIGO: CRÔNICA SOBRE A 12ª. RODA DE LEITURA ROSEANA MURRAY

COMO A AVE QUE VOLTA AO NINHO ANTIGO: CRÔNICA SOBRE A 12ª. RODA DE LEITURA ROSEANA MURRAY


No dia 17 de junho deste Ano da Graça de 2009, ocorreu a 12ª. Roda de Leitura, promovida, em sua casa, em Saquarema-RJ, pela escritora Roseana Murray. Como andava louco de saudades da tertúlia frente ao mar da Vila, visto que faltara, física, mas não literariamente, ao encontro anterior, fui o primeiríssimo a chegar, tomando para mim todas as atenções do casal Juan Arias/Roseana, que sabe acolher e cultivar as “grandes amizades”, como escreveria Raïssa Oumansoff Maritain (1883-1960), esposa do filósofo tomista francês Jacques Maritain (1882-19173); eu haveria de ser também o último participante a deixar o recinto, podendo, assim, perceber respostas, reações, ressonâncias de mais um supimpa café literário.
Em meu vetusto e vertiginoso coração, relembrava um sublime soneto parnasiano do carioca Luiz Guimarães Júnior (1847-1898), que, em minha infância mineira, eu adorava:

Visita à casa paterna

Como a ave que volta ao ninho antigo
Depois de um longo e tenebroso inverno,
Eu quis também rever o lar paterno,
O meu primeiro e virginal abrigo.

Entrei. Um gênio carinhoso e amigo,
O fantasma talvez do amor materno,
Tomou-me as mãos, olhou-me grave terno,
E, passo a passo, caminhou comigo.

Era esta a sala... (Oh! se me lembro! e quanto!)
Em que da luz noturna à claridade
Minhas irmãs e minha mãe... O pranto

jorrou-me em ondas... Resistir quem há-de?
Uma ilusão gemia em cada canto,
Chorava em cada canto uma saudade.

Para minha volta ao lar poético, enverguei um ponche andino, com as cores da cidade de Salta, na Argentina, de onde eu acabava de chegar de um périplo cultural: o vermelho de todo o tecido simboliza o sangue dos índios assassinados, ao passo que as listras negras representam o luto e os inúmeros fios de franja remetem à infinidade de aborígenes mortos. Sentia-me um escriba sacro, descendo dos Andes.

Aos poucos, a mansão se foi locupletando de professores e alunos da Rede Municipal de Saquarema, sendo a Professora Dodora (eis uma linda rima) a representante da Secretaria de Educação e Cultura. Daquela feita, duas escolas participavam: “Luciana Santa Coutinho”, do Porto da Roça (meu amado bairro, com nome tão poético), e “Edílson Vignoli Marins”, do Rio da Areia (são lindos os nomes dos nossos bairros: Rico Seco, Gravatá, Itaúna, Boqueirão, Rio das Flores...). Lembro-me de que, quando, há quase 30 anos, vim morar, de mala, cuia e filho, em Saquarema, detestei o nome de minha rua; então, um professor da UFRJ, onde, na época, eu cursava o mestrado em Teoria Literária, quis consolar-me, sugerindo-me: “pense que é o nome de algum árcade... “.
Para início de leitura, ou melhor, de conversa, Roseana Murray lembrou aos professores a existência, desde 2002, da portaria municipal, única no Brasil e engendrada por iniciativa dela própria, que estabelece, como tarefa hebdomadária em todas as escolas municipais, uma roda de leitura, no tempo de aula, usando-se texto de qualquer gênero, mas sempre literário, sem avaliação alguma e praticada como puro prazer de ler. Roseana falava gravemente e se prontificou a visitar as escolas a fim de incentivar a prática dessa inédita iniciativa.
O primeiro texto apresentado pela anfitriã foi um ensaio, intitulado “O livro”, retirado de O desenho da vida (Rio de Janeiro: Caliban, 2009), a mais recente publicação póstuma do nosso Poeta Walmir Ayala (1933-1991), um personagem gaúcho imenso, que elegeu Saquarema como musa e lugar de repouso eterno. O parágrafo inicial desse ensaio constitui a própria essência das Rodas de Leitura: “Abrir um livro é como abrir um mundo. É como um tesouro, um tesouro que depende muito mais de quem lê do que de quem escreve. A atenção, o interesse, a capacidade de transformar e de associar, dentro de cada um, é que dão a energia de que o livro necessita para viver. Ele viverá através de quem lê, como um sopro invisível e essencial. Ele poderá ser seu melhor amigo, seu companheiro nesta aventura invejável de descobrir o mundo. Porque vocês, que lêem, estão descobrindo o mundo como os antigos viajantes descobriram terras novas, e como os nossos astronautas de hoje exploram satélites e planetas” (p. 9).
De tão luminoso, esse fragmento dispensou maiores comentários, gerando, no grupo, um silêncio cúmplice, que era um tributo saudoso ao Poeta de Saquarema.
A tópica seguinte foi a leitura, por Roseana, do conto “O príncipe sonhado”, extraído do belíssimo livro de Jean-Claude Carrière Contos filosóficos do mundo inteiro (trad. Cordélia Magalhães. Rio de Janeiro: Ediouro, 2008). A escolha desse conto me certifica do gosto de Roseana Murray por contos de fadas; inda recentemente, por exemplo, ouvíamos e líamos “O príncipe feliz”, do irlandês Oscar Wilde (1854-1900). Teceram-se, por parte de alguns participantes, comentários ao conto poético da tradição sufi, cuja linha-mestra consistiu na atenção ao outro, em acreditar nos próprios sonhos, em não buscar o invisível, mas prestar o máximo de devoção ao visível; cada um de nós tem que passar por provas e o essencial é que aprendamos com nossas experiências de vida, que, muitas vezes, nos estão veladas.
O terceiro texto foi, também, um conto: “O mercador e o gênio”, retirado do livro As mil e uma noites; antes de lê-lo, Roseana contextualizou esse livro paradigmático da narrativa, tanto oriental quanto ocidental. Recorro, ipsis litteris, à Wikipédia para reforçar as consideração de nossa amada Leitora:


“As Mil e Uma Noites (Alf Lailah Oua Lailah) é uma obra clássica da literatura Persa, consistindo numa coleção de contos orientais compilados provavelmente entre os séculos XIII e XVI. São estruturados como histórias em cadeia, em que cada conto termina com uma deixa que o liga ao seguinte. Essa estruturação força o ouvinte curioso a retornar para continuar a história, interrompida com suspense no ar. O uso do número 1001 sugere que podem aparecer mais histórias, ligadas por um fio condutor infinito. Usar 1000 talvez desse a idéia de fechamento, inteiro, que não caracteriza a proposta da obra.
Foi o orientalista francês Antoine Galland o responsável por tornar o livro conhecido no ocidente (1704). Não existe texto fixo para a obra, variando seu conteúdo de manuscrito a manuscrito. Os árabes foram reunindo e adaptando esses contos maravilhosos de várias tradições. Assim, os contos mais antigos são provavelmente do Egito do século XII. A eles foram sendo agregados contos persas, hindus, siríacos e judaicos.
As versões mais populares hoje em dia são as que se baseiam em traduções de Sir Richard Francis Burton (1850) e Andrew Lang (1898), geralmente adaptadas para eliminar as várias cenas de sexo do original”.
A menção à protagonista Sherazade fez pensar em minha netinha de quatro anos, Vitória Sherazade Latifa, que, rendendo jus a seu nome, gosta de contar histórias, tendo sido ouvida, inclusive, por Roseana Murray, que sorria quando a narradora pós-moderna misturava todas as histórias de fada que conhece, terminando assim: “E eu fui feliz para sempre!”
Teremos, tenho certeza, em Saquarema, 1001 Rodas de Leitura Roseana Murray.
Em casa de Poeta, nunca falta Poesia, que ali é farta. De Manuel Bandeira - que será o centro de todas as atenções e homenagens na FLIP (Festival Literário Internacional de Paraty), deste ano, de 1º. a 5 de julho próximo, onde Roseana Murray é convidada especial -, ouvimos a leitura deste poema:
Profundamente

Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.
No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
- Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
DormindoProfundamente.
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci.
Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
TomásiaRosa
Onde estão todos eles?
- Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.

Um silêncio profundo tomou conta de todos os presentes, silêncio que ecoava o marulhar do Atlântico, bem ali em frente.Terá cada um de nós pensado, no mês das festas juninas, em seus ancestrais.
Arrematando, gloriosamente, os contos de fada, outro poema, “Eros e Psique”, de Fernando Pessoa (1888-1935), trazido pela Profa. Maria Clara, foi lido por todos em jogral: neste mundo, em que nos coube viver, podemos viver a magia da Poesia.
Um delicioso lanche alimentou os corpos, já nutridos da mais gostosa Literatura.
Saí de meu “ninho antigo”, cantando, com os meus botões, a canção “O girassol”, de Vinícius de Moraes e Toquinho :

Sempre que o sol
Pinta de anil
Todo o céu
O girassol
Fica um gentil
Carrossel
Roda, roda, roda
Carrossel
Roda, roda, roda
Rodador
Vai rodando, dando mel
Vai rodando, dando flor
Sempre que o sol
Pinta de anil
Todo o céu
O girassol
Fica um gentil
Carrossel
Roda, roda, roda
Carrossel
Gira, gira, gira
Girassol
Redondinho como o céu
Marelinho como o sol
..

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