sábado, 31 de outubro de 2009

RODA DE LEITURA ROSEANA MURRAY

A RODA DE LEITURA ROSEANA MURRAY RODA EM SUA 13ª. EDIÇÃO

Prof. Dr. Latuf Isaias Mucci

Depois de um breve interregno, devido à viagem à Espanha, aonde Roseana Murray fora conhecer seu primeiro neto, Luís, nascido em Granada, a Roda de Leitura voltou a girar, dia 23 de outubro do ano em curso, contando, então, com a presença, além dos professores e alunos das escolas municipais “Padre Manuel” (Bacaxá), “Elaine de Oliveira Coutinho” (Água Branca) e “Luciana Santa Coutinho” (Porto da Roça), com convidados especiais: a Profa. Rosângela Sivelli de Miranda, da Escola Municipal Barão Homem de Melo (Vila Isabel, Rio de Janeiro) e de professoras da Secretaria de Educação de São Gonçalo-RJ. Como em todas as edições, a Secretaria de Educação de Saquarema – promotora do evento, no que tange à convocação das Escolas, não arcando com as despesas de fotocópias e lanches, que ficam por conta da Anfitriã – fez-se presente pela Profa. Dodora e pelo Prof. Valdinei. Quem tem acesso às numerosas fotos tiradas da Roda dá-se conta da magnitude do encontro literário, que vai, a cada edição, retomando novos fôlegos e agregando mais pessoas, entusiasmadas com o projeto e sua ímpar realização. De fato, apenas Saquarema, e agora, Paraty, a partir do conhecimento do que se faz aqui, tem, em suas escolas municipais, uma “Roda de leitura”, que consta na grade curricular, com sala própria e não implicando provas, exames, notas. A iniciativa nasceu da proposta de Roseana Murray e das rodas de leitura, que têm acontecido, regularmente, em sua casa.
Pela primeira vez, Roseana manteve escancarados os portões de sua mansão a fim de, segundo ela, nos fazerem ver, o tempo todo, o mar e seu horizonte de ondas; também a música marítima nos chegava mais forte e acolhedora.
É fundamental a preparação da Roda de Leitura, quando Roseana escolhe os textos a serem lidos e comentados, bem como os acepipes a serem servidos aos convivas literários. Qual seria o conto desta 13ª. Roda de Leitura? Sempre sugiro um conto brasileiro e como já nos tínhamos debruçado sobre Machado de Assis (1839-1908), Cecília Meireles (1901-1964) e Clarice Lispector (1920-1977), indiquei Mário de Andrade (1893-1945), cujo conto “O peru de Natal” é absolutamente arrebatador.
Como de costume, Roseana Murray tomou um jornal para inaugurar aquela Roda, mas, ao invés de ler notícias sobre a leitura, apresentou um texto de Herta Muller, nascida na Romênia, de nacionalidade alemã, desconhecida do grande público e dos especialistas, embora ganhadora, este ano, do prêmio Nobel de Literatura , por "com a densidade da sua poesia e a franqueza da sua prosa, retratar o universo dos desapossados". Com tradução de Ingrid de Freitas, o texto, que mistura lirismo e imagnes de um estupendo surrealismo, “Varredores de rua” não pode classificar-se como conto, tendo, sobretudo, traços de poema em prosa: “(...) Caminho atrás de mim, caio fora de mim sobre as margens de minhas imaginações. O parque late ao meu lado. As corujas comem os beijos que ficaram sobre os bancos. As corujas não dão por minha presença. Os cansados e estafados sonhos acocoram-se nos arbustos. As vassouras varrem-me as costas porque me apoio muito na noite. Os varredores de rua varrem as estrelas formando uma pilha, varrem-nas sobre suas pás e as esvaziam no canal. (...) Agora, todos os varredores falam e misturam todas as ruas. Caminho através de seus gritos, através da espuma de seus chamados e quebro e caio na profundidade das significações. Dou passos grandes. Arranco minhas pernas com o andar. O caminho foi varrido para longe. As vassouras caem sobre mim. Tudo dá voltas sobre si. A cidade erra sobre o campo, para algum lugar”. À leitura, os presentes, extasiados com a poesia, foram fazendo conexões com outros textos, como “Tecendo a manhã”, do pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999) e Manu, romance do alemão Michael Ende (1929-1995). Todo professor representa um varredor de rua, na medida em que faz a linguagem sair do seu lugar e, nesse processo metonímico, leva os alunos a repensarem seu lugar, tanto na linguagem quanto no próprio mundo. No poema-em-prosa não há um centro, dado que as palavras-vassouras movem-se, removem as estrelas e encontram vestígios de beijos, roubados ou não. Com sua sedutora fragmentação, o texto de Herta Muller convoca seu leitor a recompor um todo, um todo móvel e comovente. As metáforas do texto criam uma atmosfera onírica, que envolve cada um de nós, errantes. Lembrei-me de um poema “O varredor”, lido em minha remotíssima infância, e que era da autoria de Dom Marcos Barbosa (1915-1997), monge beneditino mineiro, tradutor de O pequeno príncipe: “Varredor, que varres a tua/ tu varres o reino de Deus”.
Antes da leitura do conto, Roseana solicitou que eu fizesse breve apresentação de Mário de Andrade, de cuja obra me ocupo desde 2000, quando, na USP, desenvolvi pesquisa de pós-doutoramento em letras clássicas e vernáculas. Falei do autor de Macunaíma (1928) como se fala de uma pessoa a quem se ama muito e que se admira imensamente. Junto com a maresia, eu respirava e exalava alegria ao tratar, em rápidos traços, daquele que foi o protagonista da Semana de Arte Moderna, em São Paulo, em fevereiro de 1922; artista de 1001 instrumentos, que executou com excelência, Mário de Andrade emblema, para mim, o brasileiro, eruditíssimo e ligado às raízes populares, atento à sua nacionalidade e ao seu comprometimento para com um Brasil mais humano e mais digno dos brasileiros.
Considerado um conto-paradigma na literatura de língua portuguesa, o conto O peru de Natal foi lido como uma performance por Roseana Murray, que parecia uma atriz em um palco frente ao mar. Todos ríamos muito do humor, fino e cáustico, que impregna o texto todo, mas nenhuma gargalhada era mais gostosa do que a do Juan, nosso anfitrião, espanhol de nascimento, mas saquaremense de iure et de facto; com meus botões, eu me perguntava de como um espanhol poderia usufruir tão intensamente um texto, tramado em português lapidar. Jornalista internacional e escritor de vários best-sellers, Juan Arias terá algum parentesco com Mário de Andrade, também jornalista, por profissão. Juan dizia que o humor daquele conto não é óbvio, mas tem uma genial sutileza e uma saborosa sabedoria. A certa altura do gostosíssimo conto, por exemplo, Juca, o filho festivo, narra: “Comprou-se o peru, fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do Galo bem mal rezada, se deu o nosso mais maravilhoso Natal (...). Bom, principiou-se a comer em silêncio, lutuosos, e o peru estava perfeito. A carne mansa, de um tecido muito tênue boiava fagueira entre os sabores das farofas e do presunto, de vez em quando ferida, inquietada e redesejada, pela intervenção mais violenta da ameixa preta e o estorvo petulante dos pedacinhos de noz. Mas papai sentado ali, gigantesco, incompleto, uma censura, uma chaga, uma incapacidade. E o peru, estava tão gostoso, mamãe por fim sabendo que peru era manjar mesmo digno de Jesusinho nascido”.
Se texto puxa texto, conto puxa conto e vários dos participantes da Roda relembraram suas cenas de ceia de Natal em família. Roseana chamou a atenção para um elo entre o primeiro texto e o conto: lá, como cá, escreve-se em tempos de ditadura e o pai cinzento do conto pode figurar o ditador do regime comunista da Romênia: são milagres da ficção literária que faz com que textos se encontrem e se enlacem, abolindo fronteiras de tempo e espaço. Como pó, as palavras flutuam e vão pousar numa página em branco qualquer, que algum leitor – sabe-se lá onde e quando – há-de manusear. Considerado o louco da família, uma espécie de “menino maluquinho”, fiz notar que o narrador do conto remete ao próprio Mário de Andrade que, certa vez, foi taxado de louco pela família, pelo fato de ter comprado por um preço caríssimo a cabeça de um Cristo com trancinhas (um rastafári), esculpida pelo paulista Victor Brecheret (1894-1955); a partir do xingamento familiar, Mário pôde usufruir de sua condição de louco varrido. Na coleção particular de Mário de Andrade, conservada no IEB (Instituto de Estudos Brasileiros), da USP, pode-se contemplar esse Cristo-Bob Marley. Até porque o conto é bastante cênico, alguns participantes mencionaram filmes famosos, como A festa de Babete, dirigido, em 1987, pelo dinamarquês Gabriel Axel, baseado no romance homônimo de Izac Dinesen e Chocolate (2000), de Lasse Hallstrom. Falei de um outro conto, que tematiza uma festa em família – Festa de aniversário -, de Clarice Lispector; mas, contrariamente à alegria exuberante de “O peru de Natal”, o conto que trata do 85º. aniversário da matriarca tem tons nitidamente sombrios, lúgubres, céticos: a ironia demolidora de Clarice contrasta com a ironia inaugural de Mário de Andrade, que tem “felicidade clandestina”, “felicidade nova”, “felicidade maiúscula”.
Com tanto gosto pelo texto, passamos à farta mesa, onde protagonizavam bolos e pães recheados, feitos frescamente por Roseana, que sempre declara gostar mais de cozinhar do que de escrever. Mas, em sua cozinha, face ao Atlântico, ela também elabora poemas que rodam o mundo e fazem girar corações e mentes.
Será a Roda de Leitura um grande poema, composto por inúmeras e anônimas mãos.

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