sexta-feira, 7 de agosto de 2009

A ARTE EM CARNE VIVA DE MAURO TAMBEIRO

A ARTE EM CARNE VIVA DE MAURO TAMBEIRO

Entra-se, de chofre, na cena da obra de Mauro Tambeiro, gaúcho, de há muito radicado em Saquarema-RJ; não se olha impunemente essa arte, que convoca o espectador, provoca quem a contempla, instiga o fruidor. Talvez a primeiríssima impressão seja a de que se está diante de um Toulouse Lautrec tropical, face a uma releitura carioca da cena da Belle Époque parisiense, cara-a-cara com a boemia fin-de-siècle. Com a metonímia do olhar e a demora da meditação, não se desfaz a impressão primeira, que se ratifica e se adensa, tendo-se em conta o tema insistente da noite do Rio de Janeiro, cidade sensual por excelência. Nessas noites pictóricas de boemia, quase se ouve a antiga canção “A volta do boêmio”, de Adelino Moreira, que retrata, plangentemente, esse tipo de vida: “(...) a alegria/ De saber que, depois da boemia/ É de mim que você gosta mais”. Theatrum vitae, as telas encenam a vida noturna da ex-capital federal, que mantém seu charme nada discreto; ondas do mesmo mar da volúpia que avassala na noite, cada tela é uma cena, com personagens conhecidos, reconhecidos, desconhecidos, conversando, discutindo, olhando-se, namorando-se e perdendo-se num horizonte indefinível. Há sempre um piano, num canto, no fundo, no centro do palco da noite: este piano representa, para além da música que exala e que só os personagens ouvem, a própria sensualidade exaltante da noite. Serão os atores notívagos extáticos, que assumem, ainda, uma atitude estática, porque posam para o pintor-voyeur, camuflado de boêmio, freqüentador da vida noturna da Lapa e de Copacabana, e que, algumas vezes, se insere, de algum modo, na tela, expressando a mesma face melancólica, quem sabe vazia. Mesmo em cenas de dança, os corpos entrelaçados estão quedos, quais estátuas extremamente narcíseas, que exibem sedutores contornos. O drama vislumbra-se no interior dos personagens, que as espessas camadas de tinta indiciam. De fato, trata-se de um expressionismo mais que acerbado, exacerbado, exagerado pelas trinchas, pela proporção e desproporção, por um equilíbrio instável, pelos tons, pelas cores fortes e quentes, em contraste com cores frias e pálidas, o verde-limão em antítese ao laranja, o branco e o preto em oxímoro, realçando-se o traço marcado e marcante do desenho, uma ou outra vez traçando uma linha cubista, que sublinha a expressão contundente. No fundo, descobre-se o palimpsesto do desenho de histórias em quadrinhos, onde a tinta pesa na leveza do ar, certamente enluarado, da noite.
Desde que moro, na mesma Saquarema, depois de anos vagando e estudando filosofia e línguas pela Europa hippie e alhures, conheço este pintor, que, para mim, tem muito de um mistério esquivo, vincado pela imponderável sedução da arte. Àquela época, ele assinava “Mauro Guimarães” (há cerca de seis anos, ele se rebatizou artisticamente) e foi com esse nome que apresentei, inclusive, na década de 80, uma de suas exposições, por mim denominada “Galeria de retratos”. A força do retrato continua vigorosa na atual face e fase de sua arte, que se reinventa, sem, todavia, perder uma identidade fulgurante. Para aquela individual, escrevi uma apresentação, intitulada “A arte erótica de Mauro Guimarães”. Nesta nova série de quadros - safra seminal -, o erotismo pulsa sempre, não só nas curvas dos corpos e no ambiente escuso das boates, como, sobretudo, no jogo das cores, onde predominam o magenta, o vermelho vivo, o preto enigmático. Mas esse jogo erótico torna-se mais sutil, um tanto sub-reptício, levemente insinuado, com certeza apenas aludido, para não virar clichê de um ambiente, onde os corpos se buscam e se desejam. Arte do desejo mais humano, demasiadamente humano, a pintura de Mauro Tambeiro fala a metalinguagem do desejo da própria arte. O retratismo anterior fica latente, porque, na pintura em tinta acrílica, o gesto escamoteia, como se trabalhasse uma pintura a óleo, uma técnica emplastada, com sobreposições.
Mauro Tambeiro pinta a cena noturna do Rio de Janeiro, cidade para onde veio, deixando a província natal, onde estudou belas artes na Universidade Federal de Santa Maria. Para morar e criar os três filhos, escolheu Saquarema, vila de pescadores da turística Região dos Lagos. Para o bem geral da cultura brasileira, trocou, há algum tempo, a profissão de bancário pelo árduo ofício da arte. Por que não pinta ele a noite saquaremense? A noite de Saquarema é o lual e, aqui, os personagens cotidianos são pescadores, surfistas, poetas, musicistas, artistas plásticos, bailarinos, que preferem a vida solar diante do mar absoluto. Nosso pintor reserva para a metrópole o álibi da boemia.
Quando se sai de uma visita ao ateliê saquaremense de Mauro Tambeiro, tem-se a sensação de uma releitura de Juarez Machado, com a nítida diferença, porém, de que o artista catarinense marca com humor ácido sua obra, vinca de um não sei quê de grotesco seus murais, ri-se, gostosamente, da condição humana, ao passo que o pintor gaúcho não ri nem faz rirem seus personagens circunspectos, apesar do ambiente boêmio; o fruidor da obra de Tambeiro não ri nem sorri: medita, fica pensativo, talvez sorumbático diante de algo com um quê de sublime. E guarda, no mais profundo de si mesmo, a alegria da arte, que ladrão algum rouba nem traça nenhuma corrói. Poder-se-ia parafrasear o filósofo alemão Theodor W. Adorno (1903-1969) e escrever que se está diante de um choro sem lágrimas. Não se sai impunemente de uma contemplação da arte de Mauro Tambeiro: aquelas imensas telas, de 1,30m/1m, são densas vitórias-régias que rodopiam, vertiginosamente, na imaginação e na memória de quem teve o privilégio de estar tête-à-tête, coeur-à-coeur, corpo-a-corpo com uma obra que grita nossa contemporaneidade, em toda a sua exuberância, em todo o seu frenesi, e, ao mesmo tempo, em todo o seu silêncio meditativo, com laivos certos de melancolia. Com todas as suas linguagens, a Arte é uma carne viva, à qual o artista empresta uma alma sonhadora. Artista com larga experiência no exercício diuturno da pintura e que vive a urgência de pintar, Mauro Tambeiro faz da noite carioca uma esplêndida palheta de corpo e alma.

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