sábado, 22 de agosto de 2009

DOMÍCIO PROENÇA FILHO, EM SAQUAREMA

Monique Barcellos, filha do saudoso jornalista Osvaldo, em cujo jornal "Tribuna da Região" publiquei minha primeira "Crônica saquaremense", convidou-me para uma palestra sobre a nova ortografia. O tema não me seduz, porque, como o acordo ortográfico só entrará, definitivamente, em vigor, no Brasil, a partir do ano 2012, e estarei aposentado em 2011, posso continuar escrevendo como, há décadas, aprendi; quanto a meus orientandos de doutorado, eles que se dediquem à nova ortografia; até 2012, terei tempo suficiente para me acostumar com o novo código. Mas o conferencista é pessoa de minha mais alta estima e admiração; aliás, não só minha: Domício Proença Filho, professor emérito da minha UFF, é daquelas raríssimas pessoas que só expandem, em torno de si, amor e sabedoria. Eu soube, por exemplo, por sua bela esposa, que, num "show" de Ney Matogrosso, no Canecão, nosso Acadêmico negro - irmão emérito de Machado de Assis, Castro Alves, Cruz e Souza, Solando Trindade e de toda uma sublime linhagem da negritude literária nacional - foi mais festejado na platéia do que o próprio artista no palco. Ontem, dia 21 de agosto de 2009, era, na sempre luminosa Saquarema, uma noite do Sudoeste, este vento que é o imperador de nossos mares e ares. O salão da igreja paroquial de Bacaxá estava locupletado, sobretudo de jovens e até com a presença de um bebezinho, que enfrentava, feliz no colo da mãe, uma noite de frio e chuva para aprender a ortografia que haverá de praticar daqui a alguns anos. Quando cheguei, fui acolhido, no "hall", pelo sorriso amplo do Professor, que, logo, falou de sua mãe, Dona Maria (nome de rainha, que gerou um verdadeiro príncipe), que, outro dia, segundo ele, fazendo um movimento e ouvindo um ruído de suas articulações ósseas, enunciou, do alto de seus lúcidos cento e um anos: "Acho que estou ficando velha!" Outras histórias, bem antigas, de sua progenitora narrou ele e eu, entusiasmado, a classifiquei como pós-moderna avant la lettre. Num clima de narrativa correu a palestra, quando, com sua verve calorosa, o Professor-Acadêmico seduziu a platéia. Foi contando histórias, hilárias histórias, ao mesmo tempo que discutia, argumentava, criticava em torno do acordo ortográfico da língua portuguesa a vigir nos oito países que falam a língua de Camões e Machado de Assis. Uma crítica severa incide sobre o "etc." da legislação. Lembrei-me, então, de um professor belga, que tive na Université Cartholique de Louvain, que declarou certa vez: "Quand je dis 'etc.', cela signifie: je n'en sais plus rien". Anotei alguns aforismos que Domício enunciou: "Problema de língua, problema de paixão", afirmou Celso Cunha. "A paixão é narcísea", filosofou Domício. "Problema de língua, problema político", segundo Domício. Antes de representar, escrituralmente, a palavra, "a palavra está dentro da gente", sentenciou nosso ilustre conferencista. "Nada se perde, tudo se acrescenta", parafraseou ele a Lavoisier. "Ortografia é uma coisa, língua, outra". "Este acordo ortográfico simplifica, mas não unifica", ponderou Domício, que também reiterou: "O acordo privilegia a fonética, sem contudo, esquecer a etimologia". "Língua é freqüência". "O acordo unifica o consenso" (juro que, até agora, não entendi esse enunciado, que me parece pleonástico). "A língua é um sistema de oposições". "Com seus quase 200 milhões de falantes do português, o Brasil não exerce nenhum 'imperialismo da língua', como postulam alguns portugueses". " O povo é quem faz a língua; os filólogos apenas anotam, registram, comparam para, depois, traçar normas, que serão, mais tarde, transgredidas e refeitas". Ressoou, naquele recinto sacro, o ensinamento de Mário de Andrade, mulato rapsódico, segundo o qual o povo é fonte de toda arte, senhor, portanto, da língua. Anotei, gostosamente, algumas histórias com que ilustrou Domício, cheio de proezas, sua fala. Um colega seu, típico "gozador" carioca, gosta de dizer-lhe: "Agora, em consequencia deste acordo, eu vou errar com mais frequencia" (sentença dita com prosódia que desconhece o abolido trema...). Já outro colega seu do Colégio Pedro II foi assaltado, frente ao colégio, por um pivete, que lhe surripiou a carteira de dinheiro (mas professor é pobre...); narrando a todos o incidente, a vítima se queixava de que ninguém, apesar de seus gritos, o ocorrera. Então, perguntaram-lhe como ele pedira socorro. "Peguem-no, peguem-no!", bradava, inutilmente, o pobre coitado, a quem ninguém entendia, porque o brasileiro costuma começar a frase com o pronome átono... Outra historieta referia o motorista de táxi, que disse ao Acadêmico que o trema não caiu, porque, no botequim que freqüenta, há lingüiça com trema - aquela que tem todos os temperos, -, e a linguiça sem trema - que é a banal, mais barata, portanto. Como se diz "Gândavo" ou "Gandavo"? Na guerra entre o Brasil e a Holanda, um almirante holandês, vendo que era inevitável sua derrota, subiu na proa do navio e atirou-se no mar; voltou à tona duas vezes e, na terceira, antes de afogar-se, gritou: "O mar é o túmulo ideal para um herói bátavo, ou batavo, como querem alguns". Lá fora, o Sudoeste ainda rugia. Com Domício Proença Filho, pudemos repetir o aforismo de Roland Barthes, semiólogo francês, que a língua é uma festa. Se tudo se acrescenta, eu diria, após a experiência e o prazer de ouvir, ontem, ao Professor-Acadêmico: a língua é jogo. Quem se habilita?

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