segunda-feira, 13 de julho de 2009

LER É ALGO SAGRADO: A 13ª. RODA DE LEITURA ROSEANA MURRAY

Dia 8 de julho de 2009, ocorreu, na Praia da Vila, em Saquarema-RJ, a décima terceira edição das Rodas de Leitura Roseana Murray, que, daquela feita, contou, como nas vezes anteriores, com alguns convidados, para além das Escolas Municipais e seus respectivos professores e alunos – a Escola Padre Manuel, com a Profa. Kátia Devino e a Escola Orgê Ferreira do Santos com a Profa. Maria Clara -, fazendo-se presente a Secretaria de Educação pela Profa. Dodora e pelo Prof. Valdinei, que vêm prestigiando o evento cultural. O convidado internacional foi Luis Mérigo (que sobrenome anagramático: América, México, cerâmica!), artista plástico mexicano, noivo da ceramista carioca Evelyn Kligerman, useira e vezeira dessas familiares rodas; Marlene Nunes, importante funcionária da Editora Paulinas, deu o ar de sua morena graça; Tânia Damásio, ex-proprietária de livraria “Espaço Aberto”, em Ipanema, no Rio, era outra figura ilustre, agora moradora de Araruama-RJ, onde desenvolve, junto à comunidade local, excelente trabalho de oficinas de leitura.
Roseana Murray, recém-chegada da FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty-RJ), para a qual recebeu convite especial, sendo alvo de homenagens e loas, deu, para início de conversa, ou melhor, de leitura, as alvíssaras: a prefeitura de Paraty solicitou cópia da portaria municipal de Saquarema, determinando que a leitura, sem sistema de avaliação, faça parte da grade escolar, como disciplina obrigatória. Portanto, a iniciativa de nossa Poeta começa sua saga Brasil afora e adentro. Soubemos, também, que foi exarado, em Paraty, um manifesto pela leitura.
Em seguida, nossa anfitriã mensal traçou breve resenha oral de A sociedade literária e a torta de casca de batatas, um romance epistolar, encenado nas longínquas ilhas Guernsey, no Canal da Mancha, após a Segunda Guerra Mundial. Escrito pela bibliotecária e livreira que estreou na literatura com mais de 70 anos, Mary Ann Shafer, com apoio da sobrinha, Annie Barrows, o livro é uma celebração da vida através da literatura.
Foi um conto o primeiro texto lido: O lobo, de Graziela Bozano Hetzel; finda a leitura, Roseana solicitou que algum aluno parafraseasse a narrativa. A partir daí, alguns convivas quiseram narrar suas próprias experiências, ouvindo, quando ainda muito jovens, histórias contadas pelo pai ou pela mãe. A Profa. Kátia relatou que esperava, ansiosamente, a chegada do trabalho do pai que lhe contava histórias; por seu turno, Marlene disse que seu pai, pedreiro, não tinha dinheiro para comprar livros, o que o levava a inventar histórias e a brincar com as palavras; quanto a mim, mais do que preocupar-me com a interpretação dos contos, emocionou-me a lembrança de minha infância, quando, em dias de chuva, mamãe reunia os cinco filhos, empoleirados em sua cama de viúva; ela narrava histórias do Líbano distante, de onde viera nosso pai, prematurissimamente morto. Quando fui ao Líbano, eu reconheci as paisagens, as frutas, as marcas e era um filho pródigo que voltava ao lar paterno. Juan Arias quis também falar de seu pai, que, numa Espanha paupérrima e sofrendo a guerra civil e a segunda guerra mundial, inventava histórias de Veneza e da China, que nunca visitara; viajando, mais tarde, pela China e por Veneza, Juan era um visitante familiarizado com tudo aquilo.A cada Natal, o pai do Juan dava aos três filhos um conto de presente. Com sua filha Maya, nosso eminente jornalista manteve a tradição de contar fábulas, de que até hoje, quando tem uma filhinha, Kyra, ela se lembra, como de uma que falava do tique-taque do relógio. Em meio a tantas reminiscências amorosasamente literárias, Tainara, da Escola Padre Manuel, forjou, num passe de mágica, a insígnia das Rodas de Leitura Roseana Murray: “Ler é coisa sagrada”, confirmando, ou melhor, consagrando, o espírito de nossas tertúlias mensais.
Se a poesia é necessária, ela é o ar em casa de poeta. Antes, porém, de apresentar o poema do dia, Roseana pediu que eu falasse um pouco de Alphonsus de Guimaraens (1870-1921), poeta que tenho estudado bastante e com quem tenho afinidade, porque ele, nascido em Ouro Preto-MG, passou a maior parte de sua vida em Mariana-MG, cidade onde vivi minha infância e parte da adolescência. O misticismo, o decadentismo, o simbolismo do poeta de Kyriale (1902) ficam vivíssimos quando se respira o ar barroco daquela que foi a primeira capital das Minas Gerais. A temas recorrentes da poesia de todos os tempos – a amor, a morte, a religiosidade -, Alphonsus de Guimaraens imprime uma digital especial, tangida por sedutora musicalidade. Em jogral, lemos o poema “Ismália”, de 1899:

Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava perto do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...

Frente ao mar absoluto de Saquarema, esse sublime poema era uma meditação, conduzindo à felicidade possível neste mundo.
Outro poema, contemporâneo, fez um contraponto atemporal: “Eu durmo comigo”, de Angélica Freitas, inscrito em seu livro, recém-lançado, Rilkeshake:
eu durmo comigo
de bruços deitada eu durmo comigo
virada para a direita eu durmo comigo
eu durmo comigo abraçada comigo
não há noite tão longa em que eu não durma comigo
como um trovador agarrado ao
alaúde eu durmo comigo
eu durmo comigo debaixo da noite estrelada
eu durmo comigo enquanto os
outros fazem aniversário
eu durmo comigo às vezes de óculos
e mesmo no escuro sei que estou dormindo comigo
e quem quiser dormir comigo vai
ter que dormir do lado.
Antes do costumeiro lauto lanche – serviu-se uma saborosíssima canjica feita pela indefectível Wanda-, cada participante recebeu de presente um poema de Maria Clara:
“Estrelas de Ismália”
Noite.
O mar sumindo
refluindo
formando
a grande onda
incorporando
o oceano
e a cabeça
sentindo
a virulência
secretamente
virando
água moída
o peso do corpo
a leveza da alma
igualando
a estrela do céu
a estrela do fundo, Ismália,
quando se lhe agarram
as sete pontas dos cabelos
o dia raia.
Como ondas do mesmo mar da Poesia, dispersou-se o Grupo, com a consciência do saber e do sabor de que a leitura é realmente algo sagrado.

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