domingo, 26 de julho de 2009

A marcha da pantera: Clarice Lispector , por Olga de Sá

No dia 9 de dezembro, faz 24 anos da morte de Clarice, ocorrida em 1977. Esquecida pela mídia, cada vez mais estudada nos meios universitários e amada por seus leitores no Brasil e no exterior, Clarice Lispector continua viva na Literatura Brasileira contemporânea.
O primeiro romance de Clarice Lispector, Perto do coração selvagem, projetou-a imediatamente na Literatura Brasileira, como uma ficcionista consciente de seus meios de expressão.
Pretendendo traduzir o que existe de complexo e contraditório no mundo, a romancista teve de violentar a lógica da linguagem, fertilizá-la, torná-la adequada e flexível.
Assumindo um ritmo pessoal de narrativa, permeando-a de uma nota poética imprevista, Clarice rompe com a linearidade do romance tradicional, cria uma “estilística das sensações”, um dicionário imagético pessoal, articula uma “ordenação estrutural” de seus contos e romances, capaz de questionar concretamente as concepções naturalistas do gênero e de situá-la na mesma linhagem renovadora da literatura universal: Virginia Woolf, Joyce e outros.

Os problemas gerais da linguagem, da escritura, da existência e da morte, provocam “digressões” na escritura de Clarice Lispector, retardam a narrativa, fecundam as “entrelinhas” e são responsáveis por aquele caráter “ensaístico” que alguns críticos lhe censuram. Nunca, porém, essas “digressões”se caricaturam em dissertações ou assumem forma discursiva. Clarice jamais tenta ganhar o leitor para uma causa. Apenas enuncia. Sua enunciação, pontuada de comparações, de “como se”, alonga-se numa tentativa sempre recomeçada de atingir uma expressão à altura de sua percepção do mundo, ou melhor, à altura de sua cosmovisão singular e diferenciada.
Diz em A legião estrangeira: “nunca tive um só problema de expressão, meu problema é muito mais grave: é o de concepção” (p. 143).
O processo de criação de Clarice Lispector sempre foi objeto de indagação e de comentário, seja da crônica jornalística, seja da crítica literária. Correu uma espécie de lenda de que ela escrevia em transe. Sobre o assunto, foi entrevistada pelo jornalista Edgar Pereira. Clarice não costumava comentar o que escreviam sobre ela, mas a este jornalista respondeu:
“Eu não disse isso: que escrevia em transe. Simplesmente porque não é verdade. Jamais caí em transe em minha vida. Não psicografo nem baixa em mim nenhum pai-de-santo. Sou como qualquer outro escritor. Em mim, como em alguns que não são apenas racionalistas, o processo de gestação se faz sem demasiada interferência do raciocínio lógico e quando de repente emerge à tona da consciência vem em forma do que se chama inspiração”.

Trabalho do inconsciente e de sua própria ruminação interior. Dizia que só conseguia a simplicidade à custa de muito trabalho.
Reescreveu A maçã no escuro onze vezes e nesse tempo foi interrompida por seu filho Paulo que lhe pedia uma história. Inventou O mistério do coelho pensante, conto infantil, que não faz nenhuma concessão às crianças, no sentido de ensinar-lhes alguma moral, como nas fábulas. A história do coelhinho que, inexplicavelmente foge da gaiola porque está com fome, continua inexplicável até o fim. Ninguém sabe, nem o leitor, nem as crianças, nem o narrador, como é que o coelhinho gordo escapou das grades pelas quais era impossível, que passasse.
Clarice também não revia seus livros, depois de publicados. Só existe 2ª ed. revista de A cidade sitiada, com mais de mil correções. Mas são correções sem nenhum peso literário: acrescenta um sujeito, um verbo, uma pontuação, parágrafos, sempre para deixar mais claro o que certa espécie de leitor e de crítico considerou hermético.
Diz Clarice:
“Eu mesma poderia pegar um livro meu e tirar coisas que até eu vejo que não deveriam ali estar. Porque depois do livro pronto já posso ir me desligando dele. Às vezes o livro está com pernas demais. Mas é difícil saber se a gente está cortando a perna que anda ou a perna morta”.
“Eu não me incomodo muito com defeito. Defeito é coisa que nunca me atrapalhou”.

A Editora Rocco está reeditando a obra de Clarice Lispector. Na Apresentação, a encarregada dessa edição – Marlene Olinto – sublinha esse traço característico de Clarice. Como existem pouquíssimos manuscritos e poucos originais de seus escritos, torna-se não só difícil, mas quase impossível, rastrear influências ou mostrar a gênese e o desenvolvimento de sua escritura. A nova edição só corrige os erros, que se acumularam, nas sucessivas edições das obras, de uma Editora para outra.
Quando se tratou de fazer a edição critica de A paixão segundo G.H., coordenada por Benedito Nunes e da qual participei, não se encontrou o original da obra. Foi preciso ilustrar a edição com manuscritos do conto A bela e a fera.
Clarice não escrevia em transe. Tomava notas em papéis, durante o dia e, às vezes, acordando à noite e assim criou seu Fundo de gaveta. Depois reunia os apontamentos e dizia: “Estou preparada”, que significava estar com a ponta do lápis feita. Quando seus filhos eram pequenos, e viajava como esposa de diplomata, trabalhava com máquina de escrever no colo, sempre interrompida pelos meninos.
Clarice não escrevia em transe. Era uma curiosa da “terceira margem”da realidade, gostava de coisas esotéricas, de cartomantes. Macabea, personagem de A hora da estrela vai à cartomante, que lhe anuncia um destino luminoso com o estrangeiro, que a fará feliz. Macabea é atropelada por um Mercedes e vive sua hora de estrela, morrendo rodeada de curiosos.
Convidada para representar o Brasil no Congresso de Bruxaria, de Bogotá, os bruxos esperavam que ela fizesse alguma mágica, ou falasse de esoterismo.
Clarice limitou-se a ler seu conto O ovo e a galinha, conto mágico pela plurissignificação. Clarice também se dizia mágica, mas sua magia está no jogo da linguagem, na capacidade de criar um logos pessoal, fascinante, desafio ao leitor que, empaticamente é atraído por sua escritura ou dela se afasta, decepcionado.
Por isso, não começar a ler os textos clariceanos por A maçã no escuro, O lustre ou A paixão. Abordá-la pelos contos de Laços de família, Perto do coração selvagem, Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres.
Clarice não é uma escritora hermética ou difícil. Não criava palavras novas, trabalhando o significante como Guimarães Rosa, porque afirmou encontrar no dicionário todas as palavras necessárias, para o que desejava exprimir. O que em seus textos causa estranheza é a sintaxe, a serviço de figuras tais como paradoxos, oxímoros, antíteses, núcleos metafóricos, repetições.
Na apresentação de A Paixão, dirige-se pela primeira vez a possíveis leitores”.
“Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada. Aqueles que sabem que a aproximação do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente – atravessando inclusive o oposto daquilo de que se vai aproximar”.
Como “viver é difícil” e escrever é viver, não escrever é morrer, há dois focos imantados que percorrem a obra clariceana, dilaceram sua escritura, nessa ânsia de nomear o ser, sabendo que o perde.
1. O pólo epifânico, constituído pelos procedimentos literários que exprimem as epifanias de beleza, que revelam o ser num dado momento excepcional e convidam a personagem a revirar a própria existência.
2. O pólo paródico, constituído pela paródia séria, não burlesca, que denuncia o ser, pelo desgaste do signo, desescrevendo o que foi escrito, num perpétuo diálogo com seus próprios textos e com outros textos do universo literário. Neste caso, intertextualidade e intratextualidade se constituem em procedimentos paródicos.
Na passagem, na transição de um procedimento a outro que naturalmente não é cronológica, mas simultânea, existe a epifania do feio que chamei “anti-epifania”.
Nas camadas da escritura clariceana, há, portanto, duas tonalidades fundamentais:
1. o tom maior, que se espraia e se condensa em núcleos metafóricos, cujo eixo são a água, a terra, o ar e o fogo, como elementos sensíveis, que organizam a escritura porque organizam o mundo. Esses signos às vezes se “iconizam”como no caso da “barata”de A Paixão ou A Mulher e o Cavalo, se desdobram a ponto de despertar no leitor a impressão de certo barroquismo, certo esbanjamento. Este tom maior está presente em sua obra inaugural Perto do coração selvagem, em O lustre, Água viva, A maçã no escuro, em que atinge seu clímax.

2. O tom menor, o contra-canto, que já aparecem nos romances citados, instaura-se, singularmente, como paródia séria em seu terceiro romance, A cidade sitiada.

A partir daí, quase todos os títulos de seus romances exprimem, por meio de uma contradição interna, contrastante com as epifanias de beleza, o limite do ser e do escrever.
A cidade (é) sitiada / A maçã (está) no escuro / A paixão (é) segundo G.H. / O livro dos prazeres (é) aprendizagem / A hora (é) da estrela (de cinema).
Onde o contraste? O ser para Clarice apresenta uma face sensível, sensorial, capaz de ser colhida e expressa pela linguagem, uma face concreta, alcançável, a serviço da qual ela cria imagens estranhas, símbolos, recursos flexíveis e múltiplos:
- é a cidade provinciana invadida pelo progresso;
- a maçã vermelha, apetecível sobre a mesa;
- a paixão, esperada pelo leitor como erótica, “vida e amores de G.H.”
- a felicidade alcançável entre homem e mulher, como num “manual para ser feliz”.
- A hora cronológica da morte, como “hora” de estrela de cinema, Marilyn Monroe.

A outra face do ser é obscura e misteriosa, escondida e talvez a linguagem não a atinja nunca. Essa face não se entrega ao signo, que se multiplica e desdobra, se condensa e forma núcleos. São as epifanias de beleza.
Exemplos existem inúmeros. Clarice não teoriza sobre a epifania nem usa esse termo, que lhe chega via Joyce.
Joyce colheu-o na esfera religiosa e transformou-o em técnica literária. Cancelou-o como um momento de revelação do ser, (O retrato do artista quando jovem, Dublinenses), colhido pelo sujeito, e criou-o como momento objetivo, em que se constrói a epifania no texto (Ulisses ou Finnegans Wake).
Em Clarice, a cena do banho em Perto do coração selvagem ou a do cego e do Jardim Botânico no conto Amor, são epifanias de beleza, que traduzem , no primeiro caso, a estranheza sensível da puberdade, quando a menina se transfigura em mulher; no segundo caso, a exuberância da vida e da própria ânsia de existir, a que a mulher presa, na rotina do lar, não tem acesso. Como Joana, protagonista de Perto do coração selvagem, que era “tristemente uma mulher feliz”, os Laços de família que prendem e esterilizam, estereotipados na velha aniversariante festejada e ridicularizada pelos filhos, netos, genros e noras, mas que tem plena consciência de sua irônica situação.
Quanto à paródia, aparece no texto clariceano, no seu sentido etimológico de: “pará” = junto, ao lado de; “ode”= ode, canto e, portanto, “canto paralelo”, diálogo de vozes textuais. Não, no sentido de imitação burlesca, para ridicularizar ou levar ao riso.
Perceber um texto como paródico é reconhecer em filigrana um outro texto, revelar a aproximação ou o afastamento entre os textos. Os índices materiais de empréstimo – aspas, tipo itálico, referências – em princípio não são usados. Para reconhecer a paródia, o crítico deve conhecer o sub-texto e o contexto, a que a obra se refere.
A paródia não é, portanto, só um fato de escritura, mas um fato de leitura. A análise interna de um texto e sua descrição retórica não são suficientes para revelar seu caráter paródico.
A paródia, considerada escritura de conotação, oferece, além de seu significado imediato, um significado segundo, o texto parodiado, e pode ser igualmente descrita como metalinguagem. É um discurso que toma por objeto um outro discurso.
É uma operação no sentido lógico do termo. A paródia manifesta a duplicidade de uma atração e de uma recusa. Tem como referente sistemas significantes, não a sociedade. Combate o conformismo e transgride o sentido.
Na modernidade, a paródia não é considerada, como na primeira metade do século XIX, um gênero menor. Ela caracteriza a escritura moderna, organizada em espaço de tensões, que se abre para a totalidade cultural e a complexidade do existir humano, em meio aos impasses da civilização e da cultura.
Focalizei esse aspecto no texto clariceano nas quase 300 páginas do ensaio: Clarice Lispector: a travessia do oposto.
Clarice era de família judia e tinha um conhecimento amplo e profundo da Bíblia.
Além do paralelismo bíblico, de que Clarice aproveita a repetição e usa como procedimento poético, o texto de A Paixão parodia textos bíblicos.
A experiência de G.H., narrada por ela mesma depois que atinge o silêncio, é um percurso místico às avessas: a personagem G.H. é uma escultora amadora, que gosta de arrumar as coisas; é uma mulher que tem amantes, não tem olhos para a sua empregada Janair, vive num mundo “quase”, onde nada chega ao clímax. Tudo é medíocre. O espaço da experiência é um quarto de empregada, num apartamento de cobertura, esturricado de sol. Todos os “topoi” de uma experiência mística estão revertidos. O “êxtase”de G.H., deve passar pela manducação da barata, inseto imundo, segundo o Levítico – livro bíblico – que sem burla, substitui a manducação da hóstia.
Para chegar à imanência e comungar com o Deus, presente em toda a matéria do universo, G.H. tem de renunciar à transcendência de ser humano, que, ao contrário da vida plena animal, criou uma “subjetivação” ao longo dos séculos.
Só comungando a massa da barata, que vem da aurora do mundo, G.H. alcançará a “divinização”. Saberá então que “o imundo não é imundo”, pois é plasma vivo.
Não há mais espaço para esperança e futuro. É a hora de viver, sem palavras, o instante-já. G.H., em vez de recuar, vende a própria alma para saber (mito fáustico).
“Mas é que o inferno já me tomara, meu amor, o inferno da curiosidade malsã. Eu já estava vendendo a minha alma humana, porque ver já começara a me consumir em prazer, eu vendia o meu futuro, eu vendia a minha salvação, eu nos vendia”.
Atingia assim o núcleo da vida, o infernalmente inexpressivo, o nada. Todo esforço humano de salvação, que consiste em transcender, é eliminado para se ficar dentro do que é.
No mundo-barata não há piedade, elimina-se a “sentimentação” (uma das poucas palavras criadas por Clarice). A ferocidade mútua permite o assassinato de um ser pelo outro. Se a barata fosse mais forte, certamente madeixa quieta e vigilantemente matar. O texto estrutura-se sobre o paradoxo perder/ganhar, que tem fundamento bíblico.
Por que quem quiser salvar a sua vida, perde-la-á”. (Lc 9,24).
Indiciada na barata-fêmea esmagada pela cintura, metonímia da mulher, G.H. deixa cair a persona, “rosto de prata e beleza”- sua máscara humana – e chama pela mãe ancestral, parodiando a Ave-maria: “Mãe bendita sois entre as baratas, agora e na hora desta tua minha morte, barata e jóia”.
Nos interstícios da matéria primordial, a respiração do mundo é uma espécie de silêncio. O plasma, as entranhas vivas da matéria, subjazem à organização humana. Ao neutro do sêmen é inerente o ritual da vida, que G.H. pode recuperar, porque nasceu com ele. Já não tem medo de cumprir o ritual consumidor, que lhe é imanente:
“é o próprio processar-se de vida no núcleo”, “é a marca do Deus”.
A alegria de perder-se é uma alegria cega, uma alegria de sabá. A orgia do sabá realiza-se, nos textos de Clarice, sempre de noite. É a face dionisíaca de sua escritura, oposta à face apolínea, que também a caracteriza. Ângela, personagem de Um Sopro de Vida, livro póstumo, é a face dionisíaca de Clarice, oposta ao autor, sua face racional.
A questionadora postura de Clarice sobre escrever/viver, linguagem/ser enquadra a palavra escrita como instrumental da existência.
O drama vivencial de Clarice Lispector é um drama fáustico. Não por meio de influências existencialistas, via Sartre ou Heidegger, nem por meio de filtros, fechada num gabinete gótico, entre retortas, escrevendo em transe.
Vendeu a alma para saber, vendeu a vida para escrever. “Escrevo logo existo”, eis sua fórmula existencial, que Descartes baseou no pensar e Benedito Nunes formulou para ela em termos de narrativa:
“Narro, logo existo” ou formulando de outro modo: “narro, para compreender”.
Duvidar da palavra não era simplesmente um problema acidental para Clarice. Era duvidar da forma como lhe escorria a existência. Nasceu “incumbida”. Na sua escritura. Na sua sinuosa e direta marcha de pantera.

____________. “Paródia e metafísica”. In: Lispector, Clarice. A paixão segundo G.H., p. 213-236. Ed. Crítica, coord. por Benedito Nunes, notas de Olga de Sá, UNESCO, Coleçãso Arquivos, nº 13.

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