domingo, 29 de novembro de 2009

CRÔNICA ANUNCIADA DE UMA PEQUENA RODA DE LEITURA INFINITA

Como aves alvissareiras, que buscam um novo ninho, professores e alunos das escolas municipais de Saquarema foram chegando aos bandos à casa de Roseana Murray e Juan Arias para participarem, dia 25 de novembro de 2009, da 14ª. Roda de Leitura, derradeira edição, no ano em curso, de um evento, que marca, a cada vez, o calendário cultural de nossa cidade, bela e acolhedora. Vieram representantes de todas as escolas e a ampla casa amarela, com muitas cadeiras, variegados tapetes e gostosas almofadas, tornou-se, de repente, pequena para tanta gente. Cheguei até a pensar que teríamos que ir para a praia ali em frente, mas o sol era tão escaldante e talvez tanta beleza marítima desviasse nossa atenção do texto a ser lido. Notei certa preocupação no semblante maternal de Roseana, mas ela faria a mágica do espaço poético e a todos enredaria nas malhas da paixão pela Literatura, desafio que vem vencendo desde que iniciou, em 2003, seu original projeto de levar a todas as escolas daqui a leitura como prazer do texto e não como obrigação escolar.
Convidada constante, Tânia Damásio, ex-livreira carioca e contadora de histórias, moradora de Araruama e atuando em Macaé e Campos, veio, com sua presença discreta, ratificar a importância de um projeto, arrojado e feliz, que ultrapassa os muros marítimos de uma casa no Gravatá.
Se a cada vez a Roda de Leitura Roseana Murray tem uma digital, que a diferencia das anteriores, esta 14ª. Edição foi totalmente especial, na medida em que, como nos eventos anteriores, não se privilegiou o conto; embora sempre presente no que ela, Roseana, costuma chamar “Café Literário”, a Poesia (e estamos na casa de uma Poeta) ocupou plenamente o espaço e o tempo da Roda final de 2009. O poeta escolhido foi Federico García Lorca (1898-1936), que se terá reencarnado em duas pessoas: primeiramente em nosso anfitrião, o escritor Juan Arias que, na qualidade de espanhol, recebeu a incumbência de apresentar o artista seu conterrâneo. Com visível emoção que a todos contagiava, o correspondente, no Brasil, do jornal espanhol El Pais, começou seu discurso desvendando um mistério: o verdadeiro nome do poeta andaluz: Federico del Sagrado Corazón García Lorca, nome que não consta em nenhuma Wikipédia e que se deve à arraigada tradição católica da Espanha, que, àquela época, exigia que todos os recém-nascidos fossem batizados com nomes de santos; as meninas, por exemplo, tinham que se chamar “Maria”, em todas as suas modulações e mortificações... Com sedutor conhecimento de causa, Juan discorreu sobre as várias facetas do artista-mártir, que atinge, porque fala o tempo todo de amor, a leitores de todos os tempos e idades, sendo ícone máximo da luta pela liberdade; nascido em uma minúscula aldeia, do tamanho de nossa Mombaça, Lorca tornou-se o mais universal dos poetas espanhóis do século XX. Com a autêntica música do idioma de Miguel de Cervantes (1791-1616), Juan brindou, ainda, a todos com a leitura do poema lorqueano “Preciosa y el aire”. Mais do que apresentar e (re)apresentar Lorca, Juan Arias, possuidor de uma enciclopédica erudição, tratou de cultura, uma cultura fundada na mais lídima Poesia.
Já o outro personagem García Lorca representou-o o premiadíssimo ator carioca José Mauro Brant, que roterizou, com Antônio Gilberto, e atuou como Lorca na peça Pequeno Poema Infinito - traduzida, com rigor e vigor, por Roseana Murray -, que, desde 2007, roda, com imenso sucesso, o Brasil todo. A presença linda do José Mauro foi uma surpresa para todos e tornou aquela Roda de Leitura, com uma apoteótica performance, um sublime sarau. A convite da Roseana, eu assistira à pré-estréia da peça no Caixa Cultural, no Rio, e ficara emocionadíssimo; vendo, bem mais de perto e em frente ao mar, a encenação de algumas partes do Pequeno Poema Infinito, tive outras emoções e outras reflexões, inesquecíveis; é bem verdade que, em Saquarema, José Mauro não cantou, tampouco executou ao piano canções andaluzas, mas havia a música do mar ao fundo e nenhuma música, no mundo, é mais bela. Também um feérico flamboyant no quintal da casa, que florescia, pela primeira vez nesta primavera ensolaradíssima, foi testemunha gloriosa da atuação de José Mauro; como homenagem ao jovem ator, ele lhe oferecia, inserida em seu tronco, uma orquídea branca. Pesquisador ardente da obra de Lorca, tendo, inclusive, estado várias vezes em Granada – último reino mouro na Espanha -, José Mauro tem outro parentesco com Lorca: o poeta espanhol levava, numa barraca, o teatro aos mais afastados e pobres rincões da Espanha; José Mauro carregou, durante algum tempo, num caminhão, o teatro para regiões carentes de nosso imenso País. Espanha e Brasil têm muito em comum, já poetizara João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Com uma Arte encarnada, José Mauro declamou alguns fragmentos de sua peça teatral e levou a platéia a uma emoção, densa e silenciosa, só interrompida pelos aplausos das ondas atlânticas. Já não cabiam comentários, interpretações, releituras, como sói acontecer em cada Roda de Leitura, porque estava tudo completo; Shakespeare (1564-1616), o bardo paradigmático, se fez ouvir: the rest is silence.
Para que fique na memória das ondas, inscrevo, aqui, no original, o poema “Pequeño Poema Infinito”:
Para Luis Cardoza y Aragón
Equivocar el camino
es llegar a la nieve
y llegar a la nieve
es pacer durante veinte siglos las hierbas de los cementerios.
Equivocar el camino
es llegar a la mujer,
la mujer que no teme la luz,
la mujer que no teme a los gallos
y los gallos que no saben cantar sobre la nieve.
Pero si la nieve se equivoca de corazón
puede llegar el viento Austro
y como el aire no hace caso de los gemidos
tendremos que pacer otra vez las hierbas de los cementerios.
Yo vi dos dolorosas espigas de cera
que enterraban un paisaje de volcanes
y vi dos niños locos que empujaban llorando las pupilas de un asesino.
Pero el dos no ha sido nunca un número
porque es una angustia y su sombra,
porque es la guitarra donde el amor se desespera,
porque es la demostración de otro infinito que no es suyo
y es las murallas del muerto
y el castigo de la nueva resurrección sin finales.
Los muertos odian el número dos,
pero el número dos adormece a las mujeres
y como la mujer teme la luz
la luz tiembla delante de los gallos
y los gallos sólo saben votar sobre la nieve
tendremos que pacer sin descanso las hierbas de los cementerios.

Federico García Lorca, 10 de enero de 1930

Ainda na linha teatral (García Lorca é famosíssimo dramaturgo), o Prof. Robledo trouxe uma trupe de alunos seus, que encenaram parte do livro Os títeres do porrete e outras peças, de Lorca; no grupo, destacou-se a menina Paula, focada em seu papel de promissora atriz do poeta de Granada.
Com um belo poema, de sua verve - “Granada”-, a Profa. Maria Clara homenageou Roseana e Juan, poema concreto em que destaco esta estrofe:

Ósculos cheios
de morte e músculos,
amor e medo.

Mas haveria uma outra surpresa: as Escolas apresentaram uma avaliação do que representaram as Rodas de Leitura, avaliação feita em forma de poemas, cordel e ensaios críticos. A Profa. Kátia Devino, por exemplo, da Escola Padre Manuel, leu excelente texto, em que trata da importância, em sua Escola, das Rodas, que têm propiciado um ótimo desenvolvimento dos alunos, em todos os níveis e disciplinas; a Padre Manuel, ergue-se, então, segundo Kátia Devino, como modelo de uma práxis de leitura prazerosa e formadora da consciência-cidadã. Em seu discurso de abertura, Roseana citara Arnaldo Jabor que, em ensaio, afirmou: “O pensamento é coisa do diabo”. A avaliação mostra que os estudantes e os professores estão pensando, apesar dos anátemas.
Antes de nos convidar para saborear um arroz doce, sobremesa espanhola de origem árabe e aculturadíssima no Brasil, sobretudo com o acréscimo do coco, Roseana Murray agradeceu, entusiasta, a Saquarema a oportunidade de poder abrir sua casa para professores e alunos da rede escolar municipal, pois “Eu só acredito na arte dentro da vida, não separada da vida”, ensinou ela, do fundo de sua generosidade exemplar e sabedoria poética.
Esta pequena crônica de um escriba improvisado foi anunciada pela própria Roseana Murray, que, em postagem de 26 de novembro de seu blog, escreveu:
“Ontem o nosso Café Literário foi emocionante, o Latuf vai contar tudo em sua crônica que estará no site em breve. Mas quero contar um pouquinho também. Como era tudo sobre o Lorca , convidei meu amigo José Mauro Brant, ator e autor do espetáculo Pequeno poema Infinito traduzido por mim. Zé Mauro aceitou meu convite, mas como está atuando em vários espetáculos, só podia chegar a Saquarema bem tarde. Esperei na varanda, deitada na rede. Zé Mauro ia se perdendo pelo caminho e me telefonando, pedindo instruções. Fiquei aflita , assustada, mas ele chegou são e salvo. Acordei bem cedo para preparar o arroz doce. Quis fazer algum prato bem andaluz e pensei no arroz con leche. E antes das nove as pessoas já foram chegando e enchendo a varanda, só que, eu não sabia, a Secretaria de Educação , como era o último encontro, decidiu chamar TODAS as escolas, claro que apenas alguns alunos e professores de cada uma. Acho que eram umas 80 pessoas. Tive ontem a dimensão da beleza deste trabalho. Hoje, 6 anos depois do começo do projeto, podemos ver os frutos, principalmente depois da chegada do Valdinei na Secretaria, pois ele acompanha, fica em cima, faz um corpo a corpo com as escolas. Todas as escolas estão super envolvidas. Deu certo. Ontem chorei de alegria”.
Mais uma vez, o silêncio se faz eloqüente. Mas eu quis, até para transbordar um pouco uma oceânica emoção e insistente reflexão, compor esta crônica, que, qual garrafa, lanço ao mar da Internet.

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