terça-feira, 20 de outubro de 2009

SAÚDE MENTAL, RUBEM ALVES

Fui convidado a fazer uma preleção sobre saúde mental. Os que me convidaram
supuseram que eu, na qualidade de psicanalista, deveria ser um especialista
no assunto. E eu também pensei. Tanto que aceitei. Mas foi só parar para
pensar para me arrepender. Percebi que nada sabia. Eu me explico.

Comecei o meu pensamento fazendo uma lista das pessoas que, do meu ponto de
vista, tiveram uma vida mental rica e excitante, pessoas cujos livros e
obras são alimento para a minha alma. Nietzsche, Fernando Pessoa, Van Gogh,
Wittgenstein, Cecília Meireles, Maiakovski. E logo me assustei. Nietzsche
ficou louco. Fernando Pessoa era dado à bebida. Van Gogh matou-se.
Wittgenstein alegrou-se ao saber que iria morrer em breve: não suportava
mais viver com tanta angústia. Cecília Meireles sofria de uma suave
depressão crônica. Maiakoviski suicidou-se.

Essas eram pessoas lúcidas e profundas que continuarão a ser pão para os
vivos muito depois de nós termos sido completamente esquecidos. Mas será
que tinham saúde mental? Saúde mental, essa condição em que as idéias
comportam-se bem, sempre iguais, previsíveis, sem surpresas, obedientes ao
comando do dever, todas as coisas nos seus lugares, como soldados em ordem
unida, jamais permitindo que o corpo falte ao trabalho, ou que faça algo
inesperado; nem é preciso dar uma volta ao mundo num barco a vela, bastar
fazer o que fez a Shirley Valentine (se ainda não viu, veja o filme) ou ter
um amor proibido ou, mais perigoso que tudo isso, a coragem de pensar o que
nunca pensou.

Pensar é uma coisa muito perigosa... Não, saúde mental elas não tinham.
Eram lúcidas demais para isso. Elas sabiam que o mundo é controlado pelos
loucos e idosos de gravata. Sendo donos do poder, os loucos passam a ser os
protótipos da saúde mental. Claro que nenhum dos nomes que citei
sobreviveria aos testes psicológicos a que teria de se submeter se fosse
pedir emprego numa empresa. Por outro lado, nunca ouvi falar de político
que tivesse estresse ou depressão. Andam sempre fortes em passarelas pelas
ruas da cidade, distribuindo sorrisos e certezas.

Sinto que meus pensamentos podem parecer pensamentos de louco e por isso
apresso-me aos devidos esclarecimentos. Nós somos muito parecidos com
computadores. O funcionamento dos computadores, como todo mundo sabe,
requer a interação de duas partes. Uma delas chama-se hardware,
literalmente "equipamento duro", e a outra denomina-se software,
"equipamento macio". O hardware é constituído por todas as coisas sólidas
com que o aparelho é feito.

O software é constituído por entidades "espirituais" - símbolos que formam
os programas e são gravados nos disquetes.

Nós também temos um hardware e um software. O hardware são os nervos do
cérebro, os neurônios, tudo aquilo que compõe o sistema nervoso. O software
é constituído por uma série de programas que ficam gravados na memória. Do
mesmo jeito como nos computadores, o que fica na memória são símbolos,
entidades levíssimas, dir-se-ia mesmo "espirituais", sendo que o programa
mais importante é a linguagem.

Um computador pode enlouquecer por defeitos no hardware ou por defeitos no
software. Nós também. Quando o nosso hardware fica louco há que se chamar
psiquiatras e neurologistas, que virão com suas poções químicas e bisturis
consertar o que se estragou. Quando o problema está no software,
entretanto, poções e bisturis não funcionam. Não se conserta um programa
com chave de fenda. Porque o software é feito de símbolos, somente símbolos
podem entrar dentro dele.

Assim, para se lidar com o software há que se fazer uso dos símbolos. Por
isso, quem trata das perturbações do software humano nunca se vale de
recursos físicos para tal. Suas ferramentas são palavras, e eles podem ser
poetas, humoristas, palhaços, escritores, gurus, amigos e até mesmo
psicanalistas.

Acontece, entretanto, que esse computador que é o corpo humano tem uma
peculiaridade que o diferencia dos outros: o seu hardware, o corpo, é
sensível às coisas que o seu software produz. Pois não é isso que acontece
conosco? Ouvimos uma música e choramos. Lemos os poemas eróticos de
Drummond e o corpo fica excitado. Imagine um aparelho de som. Imagine que o
toca-discos e os acessórios, o hardware, tenham a capacidade de ouvir a
música que ele toca e se comover. Imagine mais, que a beleza é tão grande
que o hardware não a comporta e se arrebenta de emoção! Pois foi isso que
aconteceu com aquelas pessoas que citei no princípio: a música que saía de
seu software era tão bonita que seu hardware não suportou.

Dados esses pressupostos teóricos, estamos agora em condições de oferecer
uma receita que garantirá, àqueles que a seguirem à risca, saúde mental até
o fim dos seus dias. Opte por um software modesto. Evite as coisas belas e
comoventes. A beleza é perigosa para o hardware. Cuidado com a música.
Brahms e Mahler são especialmente contra-indicados. Já o funk pode ser
tomado à vontade.

Quanto às leituras, evite aquelas que fazem pensar. Há uma vasta literatura
especializada em impedir o pensamento. Se há livros do doutor Lair Ribeiro,
por que se arriscar a ler Saramago? Os jornais têm o mesmo efeito. Devem
ser lidos diariamente. Como eles publicam diariamente sempre a mesma coisa
com nomes e caras diferentes, fica garantido que o nosso software pensará
sempre coisas iguais. E, aos domingos, não se esqueça do Silvio Santos e do
Gugu Liberato. Seguindo essa receita você terá uma vida tranqüila, embora
banal. Mas como você cultivou a insensibilidade, você não perceberá o quão
banal ela é. E, em vez de ter o fim que tiveram as pessoas que mencionei,
você se aposentará para, então, realizar os seus sonhos. Infelizmente,
entretanto, quando chegar tal momento, você já terá se esquecido de como
eles eram.

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