domingo, 31 de janeiro de 2010

BERTHA GUTMAN KLIGERMAN

Há cerca de um ano que estou planejando ir visitar, em Teresópolis, Berthe Kligerman, com quem me encontrei apenas duas vezes em Saquarema e por quem me apaixonei perdidamente como se a conhecesse de há muito tempo. O fato de ter uma imensa amiga - Roseana Murray -, filha de Berthe, me deu, sempre, a impressão de ter conhecido a progenitora. Acabo de chegar de Teresópolis, aonde fui realizar meu projeto e visitar, "in loco", a mãe de minha "Idish mamma". Ainda estou sob o impacto das sensações que senti em dois dias na serra. Teresóplis é uma cidade lindíssima e me fez até pensar numa Gstaad tropical. Lá, fiquei hospedado na mansão de Evelyn Kligerman, filha-caçula de Berthe e ceramista de incrível talento. A casa que me acolheu fica no topo do mundo - como na canção italiana: "una casa in cima al mondo". A vista tem que ser experimentada e não cabe em palavras e imagens. Se eu ficasse mais tempo lá, iria, com certeza, ganhar um torcicolo, porque ficava, o tempo todo, me virando para melhor contemplar aquele panorama de montanhas, nuvens, sol, lua e estrelas. É uma vastidão do silêncio. É uma poesia infinita. É um poema sem ponto final. Aliás, por falar em poesia, dormi, pela primeira vez na minha vida, numa fronha-poema: nela está bordado, por mãos mineiras, um haicai de Roseana Murray: " um galo canta/ desarruma as estrelas / acorda o sol". Depois, li outro haicai, igualmente bordado na fronha da própria poeta: " silêncio na casa/ poemas são vagalumes/ atrás de um poeta". O silêncio todo na casa-panorama de Evelyn só é quebrado pelo cantar dos pássaros, por galos-tecelãs, pelo gilreio dos grilos, pelo tagarelar das cigarras; nem a linda gata siamesa - Lola - mia: apenas olha você com infinitos olhos sedutores. Mas eu sempre quis ir a Teresópolis a fim de rever Bertha. Ela e sua irmã Alice nos receberam, a mim e à Roseana, com a mesa posta, o que me deu a nítida impressão de estar numa casa judaica com certeza. Libanês, maronita, mineiro, senti-me, de chofre, imediatamente à vontade. Meus olhos voltaram-se para um quadro de um velho rabino lendo um enorme livro e voltou à minha imaginação a imagem que sempre fiz de minha velhice: com um grande livro sob os olhos. Também eu faço parte da "cultura do livro". Berthe sorria e me olhava com olhinhos espertos, não me inquirindo, porém dialogando, em silêncio. Berthe, em seus quase 90 anos, encarna, para mim, a sabedoria. É doce, meiga, delicadíssima, muito grata. Serena, enfim. Diz coisas imprevisíveis. Fala um discurso oracular. Pontua com sapiência os episódios. E expande carinho materno. Eu pensava nela como penso em minha mãe, que já partiu há 14 longos, longos, longos anos. Sonho muito com ela, sobretudo quando tomo alguma iniciativa; no meu mais recente sonho com minha mãe, ela me aparecia justamente a uma mesa de jantar. Interpretei o sonho como aprovação feliz de minha ida para ver Bertha, que me recebeu com um almoço posto. Durante os dois dias em que estive em Teresópolis, visitei Bertha duas vezes ao dia, como um de seus filhos. Ao dar-lhe um beijo de despedida, ela me perguntou: "Você gosta de colar?" Achei que ela falava do verbo "colar", dado que sou pegajoso, quase grudento. Ela pediu à Roseana que me fizesse escolher um de seus inúmeros colares. Peguei logo o primeiro, que me encantou com sua cor terracota. No meio daquela família linda e generosa, pensei, num átimo, no holocausto, que exterminou milhões e milhões de famílias judias, ciganas, negras, de "gays"... Mas não me demorei nesse assunto tenebroso, tampouco dele falei às minhas anfitriãs; fiz, porém, questão,de ganhar da Evelyn o "cd" "Jewish rapsody", que celebra a alegria de estar junto, de viver com amigos, de conviver em paz. Conheci Brigitte, bela francesa judia, que mora há anos no Brasil e me confessou, eufórica, que só no nosso País ninguém jamais perguntou qual a sua religião. Do quarto de dormir da Bertha pude contemplar o nascer da lua, absolutamente cheia, entre os picos da Serra dos Órgãos e sobre o riacho que beira, cristalino, as janelas do apartamento. Naqueles dois dias de tantas... "emoções", completou Berthe, jamais deixei de pensar em minha mãe. "Só as mães são felizes", cantou Cazuza. Bertha Kligerman é feliz e faz feliz quem dela se aproxima. Jamais um lamento. Nunca uma queixa. Cobrança alguma. Se seu corpo definha, sua mente é mais lúcida que o sol da serra ao meio-dia. Ela fala da morte como "saída" e ninguém chora a seu redor. À Bertha, fresca e "mignonne" depois de um longo banho, Roseana lhe disse: "Faz muito bem um banho"; sua mãe confirmou: "o banho é um momento de reflexão". Certa vez, li que, perguntado por que filosofava, um filósofo respondeu: "Para aprender a morrer". Estando com Bertha, estou aprendendo a viver e a morrer. Ver Bertha Kligerman é ter uma lição de vida em carne e osso.
Desde que minha mãe teve sua "saída", sempre disse que a única inveja que sinto é de quem tem mãe viva. Reedito minha santa inveja: não sinto inveja de Roseana e de Evelyn, porque, de certa forma, Bertha é, para mim, uma imagem de mãe viva.

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