sexta-feira, 20 de março de 2009

CONTO PESSOANO

A hora do diabo

Fernando Pessoa



No light, but rather darkness visible.
Mas essas chamas lançam, não luz,
mas sim treva visível. *


Saíram do terminus, e, ao chegar à rua, ela viu com pasmo que estava na própria rua onde morava, a poucos passos de casa. Estacou. Depois voltou-se para trás, para exprimir esse pasmo ao companheiro; mas atrás dela não vinha ninguém. Estava a rua, lunar e deserta, nem havia nela edifício que pudesse ser ou parecer um terminus de estação de comboios.

Tonta, sonolenta, mas interiormente desperta e alarmada, foi até casa. Entrou, subiu; no andar de cima encontrou, ainda desperto, o marido. Lia, no escritório, e quando ela entrou, depôs o livro.

«Então?» perguntou ele.

E ela, «Correu tudo muito bem. O baile foi muito interessante.» E acrescentou, antes que ele perguntasse: «Uma gente que estava lá no baile trouxe-me de automóvel até ao princípio da rua. Não quis que eles viessem até à porta. Saí ali mesmo; insisti. Ah, que cansada estou!»

E, num gesto de grande cansaço, e esquecendo-se de um beijo, foi-se deitar.

Seu filho, quando nasceu, nasceu normal de figura, mas não tardou que mostrasse que era um homem de génio. Os seus poemas têm uma feição estranha e lunar. Paira neles um desejo de grandes coisas, como de alguém que um dia tivesse pairado, numa vida antes desta, por sobre todas as cidades da terra. Recorre em seus versos uma visão de grandes pontes, inexplicável por qualquer experiência que se lhe conheça. E uma vez, num poema escrito quase em sonho, ele diz que qualquer coisa nele foi tentada, como Cristo, na grande altura de onde se vê todo o mundo.

Em baixo, a uma distância mais que impossível, estavam, como astros espalhados, grandes manchas de luz — cidades, sem dúvida, da terra. O Diabo apontou-lhas. «São as grandes cidades do mundo: aquela é Londres» — e apontou uma na distância descida. «Aquela é Berlim», e apontou outra. «E aquela ali, é Paris. São manchas de luz na treva, e nós, nesta ponte, passamos alto sobre elas, peregrinos do mistério e do conhecimento.

«Que coisa tão pavorosa e tão bonita! O que é aquilo tudo lá em baixo?»

«Aquilo, minha senhora, é o mundo. Foi daqui que, por incumbência de Deus, tentei seu Filho, Jesus. Mas não deu resultado, como eu já esperava, porque o Filho era mais iniciado que o Pai, e estava em contacto directo com os superiores Incógnitos da Ordem. Foi uma provação, como se diz em linguagem iniciática, e o Candidato portou-se admiravelmente.

«Não percebo bem. Foi de aqui, realmente, que tentou ao Cristo?»

«Foi. Está claro que, onde agora está um vale imenso, estava então uma montanha. No abismo também há geologias. Aqui, onde estamos passando, era o píncaro. Que bem que me lembro! O Filho do Homem repudiou-me desde além de Deus. Segui, porque era o meu dever, o conselho e a ordem de Deus: tentei-o com tudo quanto havia. Se houvesse seguido o meu conselho próprio, tê-lo-ia tentado com o que não pode haver. Talvez a história do mundo em geral, e a da religião cristã em particular, tivessem sido diferentes. Mas que podem contra a força do Destino, supremo arquitecto de todos os mundos, o Deus que criou este, e eu, Diabo distrital, que, porque o nega, o sustenta?»

«Mas como é que se pode sustentar uma coisa por a negar?»

«É a lei da vida, minha senhora. O corpo vive porque se desintegra, sem se desintegrar demais. Se não se desintegrasse segundo a segundo, seria um mineral. A alma vive porque é perpetuamente tentada, ainda que resista. Tudo vive porque se opõe a qualquer coisa. Eu sou aquilo a que tudo se opõe. Mas, se eu não existisse, nada existiria, porque não havia a que opor-se, como a pomba do meu discípulo Kant que, voando bem no ar leve, julga que poderia voar melhor no vácuo.»

«A música, o luar e os sonhos são as minhas armas mágicas. Mas por música não deve entender-se só aquela que se toca, se não também aquela que fia eternamente por tocar. Por luar, ainda, não se deve supor que se fala só do que vem da lua e faz as árvores grandes perfis; há outro luar, que o mesmo sol não exclui, e obscurece em pleno dia o que as coisas fingem ser. Só os sonhos são sempre o que são. É o lado de nós em que nascemos e em que somos sempre naturais e nossos.»

«Mas, se o mundo é acção, como é que o sonho faz parte do mundo?»

«É que o sonho, minha senhora, é uma acção que se tornou ideia; e que por isso conserva a força do mundo e lhe repudia a matéria, que é o estar no espaço. Não é verdade que somos livres no sonho?»

«Sim, mas é triste o acordar...»

«O bom sonhador não acorda. Eu nunca acordei. Deus mesmo duvido que não durma. Já uma vez ele mo disse...»
Ela olhou-o de sobressalto e teve subitamente medo, uma expressão do fundo de toda a alma que nunca sentira.

«Mas afinal quem é o senhor? Porque está assim mascarado?»

«Como?»

«Minha senhora, eu sou o Diabo. Sim, sou o Diabo. Mas não me tema nem se sobressalte.»

E num relance de terror extremo, onde boiava um prazer novo, ela reconheceu, de repente, que era verdade.

«Eu sou de facto o Diabo. Não se assuste, porém, porque eu sou realmente o Diabo, e por isso não faço mal.

Certos imitadores meus, na terra e acima da terra, são perigosos, como todos os plagiários, porque não conhecem o segredo da minha maneira de ser. Shakespeare, que inspirei muitas vezes, fez-me justiça: disse que eu era um cavalheiro. Por isso esteja descansada: em minha companhia está bem. Sou incapaz de uma palavra, de um gesto, que ofenda uma senhora. Quando assim não fosse da minha própria natureza, obrigava-me o Shakespeare a sê-lo. Mas, realmente, não era preciso.

«Dato do princípio do mundo, e desde então tenho sido sempre um ironista. Ora, como deve saber, todos os ironistas são inofensivos, excepto se querem usar da ironia para insinuar qualquer verdade.

Ora eu nunca pretendi dizer a verdade a ninguém — em parte porque de nada serve, e em parte porque não conheço. Meu irmão mais velho, Deus todo poderoso, creio que também a não sabe. Isso, porém, são questões de família.

«Talvez não saiba porque é que a trouxe aqui, nesta viagem sem termo real nem propósito útil. Não foi, como parecia que ia julgar, para a violar ou atrair. essas coisas sucedem na terra, entre os animais, que incluem os homens, e parece que dão prazer — creio, segundo me dizem de lá de baixo, que até às vítimas.

«De resto, não poderia. Essas coisas acontecem na terra, porque os homens são animais. Na minha posição social no universo são impossíveis — não bem porque a moral seja melhor, mas porque nós, os anjos, não temos sexo, e essa é, neste caso pelo menos, a principal garantia. Pode pois estar tranquila porque a não desrespeitarei. Bem sei que há desrespeitos acessórios e inúteis, como os dos romancistas modernos e os da velhice; mas até esses me são negados, porque a minha falta de sexo data desde o princípio das coisas e nunca tive que pensar nisso. Dizem que muitas feiticeiras tiveram comércio comigo, mas é falso; ainda que o não seja, porque o com que tiveram comércio foi com a própria imaginação, que, em certo modo, sou eu.

«Esteja, pois, tranquila. Corrompo, é certo, porque faço imaginar. Mas Deus é pior — num sentido, pelo menos, porque criou o corpo corruptível, que é muito menos estético. Os sonhos, ao menos, não apodrecem. passam. Antes assim, não é verdade?

«E o que está significado no Arcano 18. Confesso que não conheço bem o Tarot, porque ainda não consegui aprender os seus segredos com as muitas pessoas que há no mundo que o compreendem perfeitamente.»

«Dezoito? o meu marido tem o grau 18 da Maçonaria.»

«Da Maçonaria, não: de um rito da maçonaria. mas, apesar do que se tem dito, não tenho nada contra a a Maçonaria, e muito menos com esse grau. Referia-me ao Arcano do 18 do Tarot, isto é, da chave de todo o universo, da qual, aliás, o meu entendimento é imperfeito, como o é da cabala, da qual os doutores da Doutrina Secreta sabem mais do que eu.

«Mas deixemos isso, que é puramente jornalístico. Lembremo-nos de que sou o Diabo. Sejamos, pois, diabólicos. Quantas vezes tem sonhado comigo?»

«Que eu saiba, nunca», respondeu, sorrindo, Maria, fitando-o com olhos muito abertos.

«Nunca pensou no Príncipe Encantado, no Homem Perfeito, no amante interminável? Nunca sentiu ao pé de si, em sonho, o que acariciasse como ninguém acaricia, o que fosse seu como se a incluísse em ele, o que fosse, no mesmo tempo, o pai, o marido, o filho, numa tripla sensação que é só uma?»

«Embora não compreenda bem, sim, creio que pensei assim e que senti assim. Custa um pouco a confessá-lo, sabe?»

«Era eu, sempre, que sou a Serpente ― foi o papel que [me] distribuíram ― desde o princípio do mundo. Tenho que andar a tentar, mas, bem entendido, num sentido figurado e fruste, porque não vale tentar utilmente.»

«Foram os gregos que, pela interposição da Balança, fizeram onze os dez signos primitivos do Zodíaco.

«Foi a Serpente que, pela interposição a crítica, tornou realmente doze a década primitiva. [...]»

«Realmente, não percebo nada.»

«Não percebe: ouça. Outros perceberão.»

«(...)As minhas melhores criações ― o luar e a ironia.»

«Não são coisas muito parecidas...»

«Não, porque eu não sou parecido comigo mesmo. Esse vício é a minha virtude. É por isso que sou o Diabo.»

«E como se sente?»

«Cansado, principalmente cansado. Cansado de astros e de leis, e um pouco com a vontade de ficar para fora do universo e recrear-me a sério com coisa nenhuma. Agora não há vácuo nem sem razão; e eu lembro coisas antigas ― sim, muito antigas ― nos reinos de Edom que eram antes de Israel. Desses estive eu para ser rei, e hoje estou no exílio do que não tive.»

«Nunca tive infância, nem adolescência, nem portanto idade viril a que chegasse. Sou o negativo absoluto, a encarnação do nada. O que se deseja e se não pode obter, o que se sonha porque não pode existir ― nisso está meu reino nulo e aí está assente o trono que me não foi dado. O que poderia ter sido, o que deveria ter havido, o que a Lei ou a Sorte não deram ― atirei-os às mancheias para a alma do homem e ela perturbou-se de sentir a vida viva do que não existe. Sou o esquecimento de todos os deveres, a hesitação de todas as intenções. Os tristes e os cansados da vida, depois de levantados da ilusão erguem para mim os olhos, porque eu também, e a meu modo, sou a Estrela Brilhante da manhã. E há tanto tempo que o sou! Outro me veio substituir (...)»

«A humanidade é pagã. Nunca qualquer religião a penetrou. Nem está na alma do homem vulgar o poder crer na sobrevivência dessa mesma alma. O homem é um animal que desperta, sem que saiba onde nem para quê.

«Quando adora os Deuses, adora-os como feitiços. A sua religião é uma bruxaria. Assim foi, assim é, e assim será. As religiões são somente o que extravasa dos mistérios para a profanidade e dela não é entendido, pois, por natureza, o que não pode ser.

«As religiões são símbolos, e os homens tomam os símbolos, não como vidas (que são), mas como coisas (que não podem ser). Propiciam a Júpiter como se ele existisse, nunca como se ele vivesse. Quando se entorna sal, deita-se uma pitada, com a mão direita, por cima do ombro esquerdo. Quando se ofende a Deus, rezam-se uns tantos Padre-Nossos. A alma continua pagã e Deus por exumar. Só os raros lhe puseram a acácia (a planta imortal) no topo do túmulo, para que o levantassem dele quando a hora viesse. Mas esses são os que, por bem buscarem, foram eleitos para achá-lo.

«O homem não difere do animal senão em saber que o não é. É a primeira luz, que não é mais que treva visível. É o começo, porque ver a treva é ter a luz dela. É o fim, porque é o saber, pela vista, que se nasceu cego. Assim o animal se torna homem pela ignorância que dele nasce.

«São eras sobre eras, e tempos atrás de tempos, e não há mais que andar na circunferência de um círculo que tem a verdade do ponto em que está o centro.

«O princípio da ciência é sabermos que ignoramos. O mundo, que é onde estamos; a carne, que é o que somos; o Diabo, que é o que desejamos ― esses três, na Hora Alta, nos mataram o Mestre que estivemos para ser. E aquele segredo que ele tinha, para que nos convertêssemos nele, esse segredo foi perdido.»

«Também eu, minha senhora, sou a Estrela Brilhante da Manhã. Era-o antes que João falasse, porque há Patmos antes de Patmos, e mistérios anteriores a todos os mistérios. Sorrio quando pensam (penso) que sou Vénus em outro esquema de símbolos. Mas que importa? Todo este universo, com seu Deus e seu Diabo, como o que há nele de homens e de coisas que eles vêem, é um hieróglifo eternamente por decifrar. Sou, por mister, Mestre da magia: não sei contudo o que ela é.

«A mais alta iniciação acaba pela pergunta encarnada de se há qualquer coisa que exista. O mais alto amor é um grande sono, como aquele em que nos amamos de dormir. Às vezes eu mesmo, que devera ser um alto iniciado, pergunto ao que em mim é de além de Deus se estes deuses todos e todos estes astros não serão mais que sonos de si mesmos, grandes esquecimentos do abismo.

«Não pasme que eu assim fale. Sou naturalmente poeta, porque sou a verdade falando por engano, e toda a minha vida, afinal, é um sistema especial de moral velado em alegoria e ilustrado por símbolos.»

«Não (disse ela rindo) sempre há-de haver uma religião verdadeira... Sim (rindo mais) ou então todas são falsas.»

«Minha senhora, todas as religiões são verdadeiras, por mais opostas que pareçam entre si. São símbolos diferentes da mesma realidade, são como a mesma frase dita em vária línguas; de sorte que se não entendem uns aos outros os que estão dizendo a mesma coisa. Quando um pagão diz Júpiter e um cristão diz Deus estão pondo a mesma emoção em termos diversos da inteligência: estão pensando diferentemente a mesma intuição. O repouso de um gato ao sol é a mesma coisa que a leitura de um livro. Um selvagem olha para a tormenta do mesmo modo que um judeu para Jeová, um selvagem olha para o sol do mesmo modo que um cristão para o Cristo. E porquê, minha senhora? Porque trovão e Jeová, sol e cristão, são símbolos diversos da mesma coisa.

«Vivemos neste mundo dos símbolos, no mesmo templo claro e obscuro ― treva visível, por assim dizer; e cada símbolo é uma verdade substituível à verdade até que o tempo e as circunstâncias restituam a verdadeira.»

«Corrompo mas ilumino. Sou a Estrela Brilhante a manhã ― frase, por sinal, que já foi duas vezes aplicada, não sem critério ou entendimento, a outro que não parece eu.»

«Meu marido disse-me uma vez que Cristo era o símbolo do sol...»

«Sim, minha senhora. E porque não será verdade o contrário ― que o sol é o símbolo de Cristo?»

«Mas o senhor vira tudo do avesso...»

«E o meu dever, minha senhora. Não sou, como disse Goethe, o espírito que nega, mas o espírito que contraria.»

«Contrariar é feio...»

«Contrariar actos, sim... Contrariar ideias, não.»

«E porquê?»

«Porque contrariar actos, por maus que sejam, é estorvar o giro do mundo, que é acção. Mas contrariar ideias é fazer com que nos abandonem, e se caia no desalento e de aí no sonho e portanto se pertença ao mundo.»

«Há, minha senhora, com respeito ao que sucede neste mundo, três teorias distintas ― que tudo é obra do acaso, que tudo é obra de Deus, e que tudo é obra de várias coisas, combinadas ou entrecruzadas. Pensamos, em geral, em termos da nossa sensibilidade, e por isso tudo se nos volve num problema do bem e do mal; há muito que eu mesmo sofro grandes calúnias por causa dessa interpretação. Parece não ter ainda ocorrido a ninguém que as relações entre as coisas ― supondo que haja coisas e relações ― são complicadas demais para que algum deus ou diabo as explique, ou ambos as expliquem.»

«Sou o mestre lunar de todos os sonhos, o músico solene de todos os silêncios. Lembra-se do que tem pensado quando, sozinha, está ante uma grande paisagem de arvoredos e de luar? Não se lembra, porque pensou em mim, e, devo dizer-lho, verdadeiramente não existo. Se existe qualquer coisa, não sei.

«As aspirações vagas, os desejos fúteis, os tédios do vulgar, ainda quando o amamos, os aborrecimentos do que não aborrece ― tudo isso é obra minha, nascida de quando, deitado à margem de grande rios do abismo, penso que também não sei de nada. Então o meu pensamento desce, eflúvio vago, às almas dos homens e eles sentem-se diferentes de si mesmos.

«Sou o eterno Diferente, o eterno Adiado, o Supérfluo do Abismo. Fiquei fora da Criação. Sou o Deus dos mundos que foram antes do Mundo ― os reis de Edom que reinaram mal antes de Israel. A minha presença neste universo é a de quem não foi convidado. Trago comigo memórias de coisas que não chegaram a ser mas que estiveram para ser. (Então face não via face, e não havia equilíbrio.)

«A verdade, porém, é que não existo ― nem eu, nem outra coisa qualquer. Todo este universo, e todos os outros universos, com seus diversos criadores e seus diversos Satãs ― mais ou menos perfeitos e adestrados ― são vácuos dentro do vácuo, nadas que giram, satélites, na órbita inútil de coisa nenhuma.»

«Não estou falando contigo mas com teu filho...»

«Não tenho filho... Isto é, vou tê-lo daqui a seis meses, se Deus quiser...»

«É com ele que estou falando... Daqui a seis meses? Seis meses de quê?

«De quê?! Seis meses...»

«Seis meses solares? Ah, sim. Mas a gravidez vai por meses lunares, e eu mesmo não posso contar senão por meses de Lua, que é minha filha, isto é, a minha cara vista nas águas do caos. Com a gravidez e todas as porcarias da terra não tenho nada que ver, nem sei por que graça me foram medir essas coisas pelas leis da lua que forneci. Porque não arranjaram outra bitola? Para que é que o omnipotente precisava do meu trabalho?»

«Desde o princípio do mundo que me insultam e me caluniam. Os mesmos poetas ― por natureza meus amigos ― que me defendem, me não têm defendido bem. Um ― um inglês chamado Milton ― fez-me perder, com parceiros meus, uma batalha indefinida que nunca se travou. Outro ― um alemão chamado Goethe ― deu-me um papel de alcoviteiro numa tragédia de aldeia. Mas eu não sou o que pensam. As Igrejas abominam-me. Os crentes tremem do meu nome. Mas tenho, quer queiram quer não, um papel no mundo. Nem sou o revoltado contra Deus, nem o espírito que nega. Sou o Deus da Imaginação, perdido porque não crio. É por mim que, quando criança, sonhaste aqueles sonhos que são brinquedos; é por mim que, quando mulher já, tiveste a abraçar-te de noite os príncipes e os dominadores que dormem no fundo desses sonhos. Sou o Espírito que cria sem criar, cuja voz é um fumo, e cuja alma é um erro. Deus criou-me para que eu o imitasse de noite. Ele é o Sol, eu sou a Lua. Minha luz paira sobre tudo quanto é fútil ou findo, fogo-fátuo, margens de rio, pântanos e sombras.

«Que homem pousou sobre os teus seios aquela mão que foi minha? Que beijo te deram que fosse igual ao meu? Quando, nas grandes tardes quentes, sonhavas tanto que sonhavas de sonhar, não viste passar, uma figura velada e rápida, a que te daria toda a felicidade, a que te beijaria indefinidamente? Era eu.

«Sou eu. Sou aquele que sempre procuraste e nunca poderás achar. Talvez, no fundo imenso do abismo, Deus mesmo me busque, para que eu o complete, mas a maldição do Deus Mais Velho ― o Saturno de Jeová ― paira sobre ele e sobre mim, separa-nos quando nos devera unir, para que a vida e o que desejamos dela fossem uma só coisa.

«O anel que usas e amas, a alegria de um pensamento vago, o sentires que estás bem no espelho em que te vês ― não te iludas: não és tu, sou eu. Sou eu que ato bem todos os laços com que as coisas se decoram, que disponho certas as cores com [que] as coisas se ornam. De tudo quanto não vale a pena ser faço eu meu domínio e meu império, senhor absoluto do interstício e do intermédio, do que na ida não é vida. Como a noite é o meu reino, o sonho é o meu domínio. O que não tem peso nem medida ― isso é meu.»

«Os problemas que atormentam os homens são os mesmos problemas que atormentam os deuses. O que está em baixo é como o que está em cima, disse Hermes Três Vezes Máximo, que, como todos os fundadores de religiões, se lembrou de tudo, menos de existir. Quantas vezes Deus me disse, citando Antero de Quental, "Ai de mim! ai de mim! e quem sou eu?"

«Tudo é símbolo e atraso, e nós, os que somos deuses, não temos mais que um grau mais alto numa Ordem cujos Superiores Incógnitos não sabemos quem sejam. Deus é o segundo na Ordem manifesta, e não me diz quem é o Chefe da Ordem, o único que conhece ― se conhece ― os Chefes Secretos. Quantas vezes Deus me disse: "Meu irmão, não sei quem sou."

«Tendes a vantagem de serdes homens, e creio às vezes, do fundo do meu cansaço de todos os abismos, que mais vale a calma e a paz de uma noite da família à lareira que toda esta metafísica dos mistérios a que nós, os deuses e os anjos, estamos condenados por substância. Quando, às vezes, me debruço sobre o mundo, vejo ao longe, indo do porto ou voltando a ele, as velas dos barcos dos pescadores, e o meu coração tem saudades imaginárias da terra onde nunca esteve. Felizes os que dormem, na sua vida animal, ― um sistema peculiar de alma, velado em poesia e ilustrado por palavras.»

«Esta conversa foi interessantíssima...»

«Esta conversa, minha senhora? mas esta conversa, embora talvez o facto mais importante da sua vida, nunca verdadeiramente se deu. Em primeiro lugar, é bem sabido que eu não existo. Em segundo lugar, como estão concordes os teólogos, que me chama Diabo, e os livres pensadores, que me chamam Reacção, nenhuma conversa minha pode ter interesse. Sou um pobre mito, minha senhora, e o que é pior, um mito inofensivo. Consola-me só o facto de que o universo ― sim, esta coisa cheia de várias formas de luzes e de vidas ― é um mito também.

«Dizem-me que todas estas coisas podem ser esclarecidas à luz da Cabala e da Teosofia, mas são esses assuntos de que nada sei; e Deus, a quem uma vez falei deles, disse-me que também os não compreendia bem, pois que eram pertença exclusiva, em seus arcanos, dos grandes iniciados da Terra ― que, pelo que tenho lido em livros e jornais, são e têm sido abundantes.

«Aqui nestas esferas superiores, de onde se criou e transformou o mundo, nós, para lhe dizer a verdade, não percebemos nada. Debruço-me às vezes sobre a terra vasta, deitado à margem do meu planalto sobe tudo ― o planalto da Montanha de Heredom, como já lhe ouvi chamar ― e cada vez que me debruço vejo religiões novas, novas iniciações, novas formas, todas contraditórias, da verdade eterna, que nem Deus conhece.

«Confesso-lhe que estou cansado do Universo. Tanto Deus como eu de bom grado dormiríamos um sono que nos libertasse dos cargos transcendentes em que, não sabemos como, fomos investidos. Tudo é muito mais misterioso do que se julga, e tudo isto aqui ― Deus, o universo e eu ― é apenas um recanto mentiroso da verdade inatingível.»
«Não imagina quanto apreciei a sua conversa. Nunca ouvi falar assim.»

Tinham saído para a rua, cheia de luar, na qual ela não reparara. Ela calou-se um momento.

«Mas, sabe ― é curioso ― sabe realmente, e no fim de tudo, o que sinto?»

«O quê?» perguntou o Diabo.

Ela voltou para ele olhos subitamente marejados.

«Uma grande pena de si!...»

Uma expressão de angústia, como ninguém julgaria que pudesse haver, passou pelo rosto e pelos olhos do homem vermelho. Deixou cair de súbito o braço que enlaçava o dela. parou. Ela deus uns passos, constrangida. Depois voltou-se para trás para dizer qualquer coisa ― não sabia o quê porque nada percebera ― para se desculpar da mágoa que viu que causara.

Ficou atónita. Estava sozinha.

Sim, era a rua dela, o topo da rua, mas além dela não estava ali ninguém. O luar batia, claríssimo, não na saída do funicular, mas nas duas portas fechadas da serralharia de sempre.

Não, além dela, não estava ali ninguém. Era a rua de dia vista à noite. Em vez do sol o luar ― mais nada; um luar normal muito claro que deixava naturais as casas e as ruas. O luar de sempre, e ela avançou para casa.

«Vim com gente conhecida. Como vinham para os mesmo lados...»

«E como vieste? A pé?»

«Não. Vim de automóvel.»

«Essa é boa! Não ouvi.»

«Não até à porta», disse ela sem hesitação. «Passaram ali à esquina, e eu pedi que me não trouxessem até aqui, porque queria andar este bocado de rua com este luar tão lindo. E está lindo... Olha, vou-me deitar. Boa noite...»

E foi, sorrindo, mas sem lhe dar um beijo ― o do costume, que ninguém ao dar sabe se é costume se é beijo.

Nenhum deles reparou que se não tinham beijado.

A criança, um rapaz, que nasceu cinco meses depois, veio, no decurso do tempo geral e do seu crescimento particular, a revelar-se, quando já homem, muito inteligente ― um talento, talvez um génio, o que era talvez verdade, embora o dissessem alguns críticos.

Um astrólogo que lhe [fez] o horóscopo, disse-lhe que tinha Cancer do Ascendente, e Saturno como signo.

«Diga-me uma coisa, mãe... Dizem que certas memórias maternas se podem transmitir aos filhos. Há uma coisa que constantemente me aparece em sonhos e que não posso relacionar com coisa alguma que me houvesse sucedido. É uma memória de uma viagem estranha, em que aparece um homem de vermelho que fala muito. É, primeiro, um automóvel, e depois um comboio, e nessa viagem em comboio passa-se sobre uma ponte altíssima, que parece dominar toda a terra. Depois há um abismo, e uma voz que diz muitas coisas, que, se eu as ouvisse, talvez me dissessem a verdade. Depois sai-se à luz, isto é, ao luar, no fim da rua... Ah, é verdade, no fundo ou princípio de tudo há uma espécie de baile, ou festa, em que esse homem de vermelho aparece...»

Maria depôs no colo a sua costura. E, virando-se para a Antónia, disse:

«Ora isto tem graça. está claro que aquilo dos comboios e dos automóveis e tudo mais é sonho, mas, realmente, há uma parte de verdade... Foi aquele baile no Clube Azul, no Carnaval, aqui há muitos anos ― sim, uns cinco ― uns seis ― meses antes de este nascer. lembras-te? Eu dancei com um rapaz qualquer vestido de Mefistófeles, e depois vieram trazer-me a casa no seu automóvel, e eu fiquei, até, no fim da rua (olha, onde ele diz que saiu do abismo...)...»

«Oh filha, lembro-me perfeitamente... Nós queríamos vir até à porta de casa, aqui, e tu não quiseste. Disseste que gostavas de andar este bocadito ao luar...»

«Isso mesmo.... Mas é engraçado, filho, que tu tenhas acertado com certas coisas que estou certa que nunca te contei. É claro, não tem importância nenhuma... Que coisas curiosas que são os sonhos! Como é que se pode arranjar assim uma história, em que há coisas verdadeiras ― e tantos grandes disparates, como o comboio e a ponte e o subterrâneo?»

Ingrata humanidade! Assim se agradeceu ao Diabo.



.............................................................................................................................

* Epígrafe, assim designada e traduzida por Fernando Pessoa.

nota: os bolds aqui apresentados são da minha autoria, em jeito de sublinhados.

Um comentário: