sábado, 28 de março de 2009

SOBRE CARLOS PENA FILHO (1929-1960)

Carlos Pena Filho – O Poeta Atlântico (I)
Lucas Tenório (*)
“Tânia: recebe este livro agora mesmo composto na face azul do teu rosto, ilha de sal e de areias azuis como as nossas veias”. Carlos Pena Filho (Dedicatória do Livro Geral de seus poemas a Tânia, sua mulher). É lamentável que a Pena de Carlos Pena Filho ainda seja pouco conhecida de boa parte do público brasileiro (II), enquanto a Cal de João Cabral de Melo Neto, o maior poeta brasileiro na síntese da materialidade das coisas (Carlos maior que ele na síntese de significados íntimos), e o Armorial de Ariano Suassuna, um híbrido dos dois, tenham alcançado todo o mundo.
Em conversa com Rita Amaral, outra sua admiradora, ao procurarmos uma identificação para a obra do poeta Carlos Pena, conhecido como Poeta do Azul, concluímos, atrevidamente, por chamá-lo de Poeta Atlântico, com o fito de afastar um pouco da poeira do esquecimento que se depositou sobre o que disse o homem que partiu prematuramente, aos 31 anos, em 1960.
Atrevidos nós, porque julgamos que o sumo acadêmico Manuel Bandeira o cognominou de Poeta Solar, quando recambiou aquela cor para o amarelo do sol, em sua visita ao Soneto do Desmantelo Azul:
“ESCREVO ESSE NOME, e estou certo que o inscrevo na eternidade [...] Como Mallarmé, tinha o poeta pernambucano a obsessão do azul: a sua bela Maria Tânia lhe parecia ‘bela e azul’, na rosa que ele amou via, nos seios da rosa, dois bêbedos marujos ‘desesperados, sós, raros, azuis’, há uma orgia de azul no ‘Soneto do desmantelo azul’, onde acaba nascendo um sol ‘vertiginosamente azul’ (Bandeira, apud Carneiro Leão, 1999:11) Percebemos, desse relato, relato do maior nome da poesia brasileira de todos os tempos, ao lado de Carlos Drummond de Andrade, o quanto é intenso, belo e forte o estro de Pena Filho.
Carlos Pena recebeu também, em carta póstuma, os comentários singelos e carinhosos do amigo Romancista Jorge Amado (1999:09) , talvez o maior romancista brasileiro, em que, entre outras coisas, o trata como “Carlinhos”, e que faz silenciar as apreciações nossas para, prudentemente, ouvi-los melhor:
“[...] Eras frágil de carne e osso, tão leve na balança, um vento mais forte podia te arrastar como uma folha de árvore ou um pedaço roto de poema. Por isso talvez sempre me deste a idéia de um anjo por amor perdido nas ruas do Recife. Mas como eras denso de vida por dentro, como eras tão homem e tão povo, tão pernambucano e universal!” O sociólogo Gilberto Freyre, por seu turno, o compara a um pintor de palavras, em seu comentário aposto no Livro Geral de Poemas do poeta.
“[...] É característico de Carlos Pena Filho ter dado a alguns de seus poemas títulos que confirmam nele o artista pictórico a servir-se por vezes de palavras como se serviria de tintas. A escrever, pintando com palavras (III) (Freyre, 1999:12).
(Tela “Cidade Azul”, do pintor francês Henri Matisse)
De fato, Carlos Pena Filho, o nosso (meu e da Rita, oxalá de todos) Atlas Poietés, ou Trovador Atlântico, carrega seus poemas de tonalidades marítimas, suaves e intensas – em sua obra não se pode pensar sem uma imanente associação a cromatismos sentimentais -, como se os construísse em uma grande sinfonia de luzes, mediando Céu e Mar, em pares de contrastes, como nestes versos:
“O enorme céu que cobre mar e mágoas ele abriga os astros, sustém meu claro sonho sobre as águas, velas e mastros.
Um dia hei de encontrar terra ignota: é assim quem sonha. E se nenhuma houver em minha rota, Que Deus a ponha.
Em meio ao longo mar não faço caso dos dias meus, Pois tenho a guiar-me o vento ou o puro acaso e o acaso é Deus.” (Pedro Álvares Cabral, 1999:51)
(Torre Malakoff - Recife – Pernambuco) Ou Trevas e Luz, Corpo e Alma, como nestes
“O quanto perco em luz conquisto em sombra e é de recusa ao sol que me sustento. Às estrelas prefiro o que se esconde nos crepúsculos graves dos conventos.
Humildemente envolvo-me na sombra que veste, à noite, os cegos monumentos isolados nas praças esquecidas e vazios de luz e movimento.
Não sei se entendes: em teus olhos nasce a noite côncava e profunda, enquanto clara manhã revive em tua face.
Daí amar teus olhos mais que o corpo com esse escuro e amargo desespero com que haverei de amar depois de morto.”
(Soneto, 1999:63) Carlos Pena Filho mostra-se também um dissecador dos zéfiros e das primícias do arco-íris, num gesto poético ainda mais ousado que dá a noção exata do alcance de sua percepção:
“Aquém do sonho e além dos movimentos uma nesga de azul perdeu as asas. Quem a invadir, invade os próprios ventos que varrem mares e entram pelas casas.
Às vezes, penso: não tem dor nem mágoas quem se ofertou a tão alegre ofício, mas a mulher que mora atrás do início, diz: são meus estes céus, minhas as águas
que dormem neste chão, minhas as cores que apascentam teus olhos e que vêm de mim e vão das nuvens ou das flores.
Mas só pode ir além dos movimentos, onde, serena, habito há muito, quem pela nesga de azul entrar nos ventos.”
(Soneto Raspado das Telas de Aloísio Magalhães, 1999:88) O Trovador Atlântico também “pisava” na terra (e como a semeava...),
Como uma espécie de Ícaro luso-brasileiro e insatisfeito, do século XX. Talvez Renato Carneiro Campos tenha-lhe decifrado o porquê no seguinte depoimento:
“Nos últimos poemas, nos mais brasileiros pelo ritmo e pela temática, revela sua mestiçagem verbal, escreve palavras de sua época. Tudo isso como resultado da luta tremenda que trava todo escritor latino-americano [...], na procura de uma expressão nova e mestiça.” (1999:primeira orelha) Este aspecto pode ser visto, inclusive, neste poema:
Carolina, a cansada, fez-se espera e nunca se entregou ao mar antigo, Não por temor ao mar, mas ao perigo de com ela incendiar-se a primavera.
Carolina, a cansada que então era, despiu, humildemente, as vestes pretas e incendiou navios e corvetas já cansada, por fim, de tanta espera.
E cinza fez-se. E teve o corpo implume escandalosamente penetrado de imprevistos azuis e claro lume.
Foi quando se lembrou de ser esquife: abandonou seu corpo incendiado e adormeceu nas brumas do Recife.
(Soneto das Metamorfoses – A Edmundo Morais, 1999:112) O Poeta do Azul, Poeta Solar, ou para nós (e muitos nós náuticos) Trovador Atlântico, ou Deus saiba lá o quê (e acho que o saiba), era apaixonado pela ilha metade roubada ao Mar, metade ao Rio, o nosso, dos pernambucanos e de todos, Capibaribe. Daí o seu, o que modestamente lhe oferecemos, epíteto.
O poeta fez dessa ilha, a ilha Recife, seu porto de pousada e seu túmulo vivo de palavras e da sua alma. Tanto que podemos encontra-lo, vívido e de olhos bem abertos e certamente azuis, se aceitarmos o seu convite para conhecê-la:
“No ponto onde o mar se extingue (IV) E as areias se levantam Cavaram seus alicerces Na surda sombra da terra E levantaram seus muros Do frio sono das pedras. Depois armaram seus flancos: Trinta bandeiras azuis plantadas no litoral. Hoje, serena flutua, metade roubada ao mar, Metade à imaginação, Pois é do sonho dos homens Que uma cidade se inventa.”
(Guia Prático da Cidade do Recife – O Início, 1999:129) Depois de fazer conhecer, na seqüência, O Navegador Holandês, Manuel, João e Joaquim, A Praia, os Subúrbios, A Lua, as Igrejas, O Bairro do Recife, São José, o Chopp, os Oradores, os Secos e Molhados, embriagado, provavelmente, ele termina, num gesto de bigamia:
“Recife, cruel cidade, águia sangrenta, leão. Ingrata para os da terra, boa para os que não são. Amiga dos que a maltratam inimiga dos que não, este é o teu retrato feito com tintas do teu verão e desmaiadas lembranças do tempo em que também eras noiva da revolução.”
(Guia Prático da Cidade do Recife – O Fim, 1999:142-143)
Concluindo, arrisco dizer que todo poeta que se queira prezar ou que espera ser prezado pelos outros, deve ler e estudar a obra do magistral bardo pernambucano Carlos Pena Filho, como qualquer brasileiro, ou falante da língua portuguesa – principalmente -, não apenas pelas construções quase mágicas dos seus versos, como pelo aprendizado do tingimento das emoções, como ele souber fazer como pouquíssimos, senão único. Vale ressaltar que os “azuis” também estão presentes, e bem presentes, em Drummond, Bandeira, Quintana, Vinícius, Cruz e Sousa, Meirelles, Pessoa, Natália Correia, entre muitos outros, mas não como o estão em Carlos Pena Filho
Além do mais, ler Carlos Pena, no mínimo, nos induz a sonhar com um mundo vertiginosamente azul. Azul.
(*) O autor é pernambucano e, além de ensaísta, também é poeta, cronista, letrista. __________
NOTAS
(I)Agradeço a carinhosa colaboração da minha querida amiga Rita Amaral, que engrandeceu as discussões com suas perspicácia, sensibilidade, estímulo e rigor formal, sem os quais seria impossível a confecção deste ensaio em toda a sua profundidade e abrangência.. (II) Fonte Biografia e seleção de poemas: Jornal de Poesia. (III) A antropóloga paulistana Rita Amaral o compara ao pintor francês Henri Matisse, por sua delicadeza na passagem das tonalidades mais intensas às mais suaves.. (IV) Da cidade do Recife (Lucas Tenório – LT)
BIBLIOGRAFIA:
Amado, Jorge. “Carlinhos” In Carneiro Leão, Tânia (Org) Livro Geral Poemas Carlos Pena Filho, Edição da Organizadora, Recife, 1999 (2ª edição) pp.09-10. Bandeira, Manuel. “Carlos Pena Filho” In Carneiro Leão, Tânia (Org) Livro Geral Poemas Carlos Pena Filho, Edição da Organizadora, Recife, 1999 (2ª edição) pp.11. Campos, Renato Carneiro.In Carneiro Leão, Tânia (Org) Livro Geral Poemas Carlos Pena Filho, Edição da Organizadora, Recife, 1999 2ª edição (orelha) Carneiro Leão, Tânia. (Org) Livro Geral Poemas Carlos Pena Filho, Edição da Organizadora, Recife, 1999 (2ª edição) 159 pp. Freyre, Gilberto. “Carlos Pena Filho” In Carneiro Leão, Tânia (Org) Livro Geral Poemas Carlos Pena Filho, Edição da Organizadora, Recife, 1999 (2ª edição) pp.12-17. Pena Filho, Carlos. Livro Geral Poemas.(Organização de Tânia Carneiro Leão) Edição da Organizadora, Recife, 1999 2ª edição
Página feita em 09 de setembro de 2003
« Voltar

Nenhum comentário:

Postar um comentário