sábado, 28 de março de 2009

SOB O SIGNO DO AZUL : A DÉCIMA EDIÇÃO DA RODA DE LEITURA ROSEANA MURRAY

Depois de um longo e maravilhoso verão, voltaram as Rodas de Leitura Roseana Murray, cuja décima edição realizou-se dia 27 de março de 2009. Ao contrário das edições anteriores, ocorridas aos sábados pela manhã, essa primeira Roda de Leitura do ano de 2009 inaugurou, por motivos da Secretaria de Educação de Saquarema, as sextas-feiras como momento do encontro, na casa da escritora Roseana Murray, de professores e alunos da rede educacional de nosso Município.
Freqüentador contumaz desse já tradicional evento cultural e nomeado, por obra e graça do Fado, seu escriba, estava eu tão ansioso por seu reinício que, na noite anterior, tive um pesadelo, porque não conseguira chegar a tempo de assistir. Ainda com a angústia noturna, dirigi-me bem cedo para o reencontro, tendo sido alegremente recebido, ao portão que dá para o mar, pela própria Roseana, portando um lindo vestido coral, com margaridas outonais. Como excelente mãe – paradigma da Idish Mamma -, ela me ofereceu iogurte com mel e mamão, de que pedi a receita, já inscrita em meu blog (www.professorlatuf.blogspot.com). Fui agraciado com um outro presente : a terceira edição de seu primeiro livro, Fardo de carinho (a primeira edição data de 1986), belamente ilustrado por Elvira Vigna, publicado pela editora Lê, de Belo Horizonte. Pela primeira vez em minha provecta existência, recebi um presente com condição: ela pedia que eu trabalhasse com meus alunos da UFF este poema « O caçador de nomes » :
Cada coisa tem um nome.
Coloco em minha bagagem
um pouquinho de coragem
e atravesso a floresta
para descobrir o nome das coisas

Riachinho chuá-chuá,
que nome que você tem ?
- estou com pressa – diz o riacho –
vivo viajando, vem comigo, vem !

Borboleta de asas brilhantes
que nome você tem ?
- Estou ocupada, voando, voando
não posso parar, parar de voar.

Grilo do pulo grande
que nome que você tem ?
- Só posso pular,
- só posso pular
não posso falar,
não posso falar.

Mas será possível !
Ninguém tem um minuto
para me escutar ?
O eco responde :
- Ninguém tem...
ninguém tem...

Tendo eu lindo, em voz alta, o poema, comentei com minha anfitriã-Poeta que é todo o meu curso de semiologia e que me lembra um poema, posteriormente publicado, de Arnaldo Antunes, com o vídeo « Todos os nomes ». Falei também da mitologia grega, referida em « Eco », a voz recalcada de Narciso. Já nasceu excelente a poesia de Roseana Murray.
Como fui o primeiro a chegar, observei : « Já podemos começar a Roda de Leitura, porque estamos Roseana, Juan (seu marido escritor) e eu ! ». Pude observar também a bela configuração da varanda, onde ocorrem as leituras : tapetes coloridos pelo chão, desenhando borboletas, prontas para o vôo da liberdade e do sonho, que a literatura propicia. Muito em breve, aqueles tapetes e almofadas, frente a um úbere jardim e a um mar profundamente azul e revolto, acolheriam jovens ávidos de leitura amorosa.
Para além de minha virginiana ansiedade, eu estava também curioso quanto ao roteiro dessa décima Roda de Leitura, pois Roseana me informara, anteriormente, que apresentaria um conto do chileno Pablo Neruda (1904-1973) e um poema do espanhol Federico García Lorca (1898-1936) ; depois, ela mudou os planos e não quis me dar a conhecê-lo, reservando-me uma surpresa. Pensei, imediatamente, no provérbio renascentista Serio ludere, que se poderia traduzir por « brincar seriamente » ; de fato, a Arte é um grande jogo, um brinquedo com toda a seriedade de uma criança que joga ; eu estou, de há algumas décadas, nesse jogo, de que assumo os riscos e o gozo.
Antes, porém, de o cenáculo completar-se com professores, alunos das escolas Castelo Branco, Clotilde de Oliveira Rodrigues e Ismênia de Barros Barroso, bem como com convidados especiais, Roseana falou de certo filme, onde um prisoneiro desenhara, na parede da cela, uma janela com vasos de flores : ele via o mundo através dessa janela imaginária. Com o desenrolar da Primeira Roda de Leitura de 2009, fui-me dando conta de que, mais do que a conexão entre os textos, era a alegoria da janela do sonho libertário que suturava aquele reencontro hebdomadário mágico.
Retomando o roteiro tradicional, nossa amada Anfitriã teceu o elogio da leitura, traçou proverbiais considerações sobre a educação e apresentou uma entrevista com o escritor estadunidense Alvin Toffler, publicada em O Globo, de 4 de novembro de 2007 ; feita a leitura, em diálogo, ocorreu um certo debate, onde se pontuou a necessidade de uma radical reformulação do paradigma vigente da educação, que, ao invés de um modelo, calcado na produção industrial, visará ao desenvolvimento do ser humano, que busca realizar-se através da criatividade e da participação. O primeiro participante a manifestar-se foi um adolescente, Enílson Júnior, que chamou a atenção de todos para o fato de se questionar o modelo asiático, devendo-se apelar para o ócio criativo ; participante fiel, Antônio Francisco Alves Neto, procurador do Municípío e nosso querido poeta, intimamente chamado Chico, interferiu dizendo que « a Roda de Leitura é já uma escola nova ».
Passou-se, em seguida, à leitura do texto « Arte de ser feliz », da carioca Cecília Meirelles (1901-1964), que abre uma janela poética para o universo, onde a anáfora « Houve um tempo em que... » dá o tom de uma escritura essencial, cujo epílogo assim coroa a obra : « Às vezes, abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes, encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas , duas a duas, como refletidas no espelho do ar. Marimbondos : que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. Às vezes, um galo canta. Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo seu destino. E eu me sinto completamente feliz. Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante da minha janela, uns dizem que essas coisas não existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar para poder vê-las assim ». Face a tamanha beleza da descrição, fez-se um silêncio, interrompido pela questão de Roseana : « Conte-nos uma pequena felicidade sua » ; alguns se pronunciaram : « andar na grama » ; « tomar banho de chuva » ; « o barulho do mar » ; Juan Arias respondeu : « Só tenho grandes felicidades » ; inquirido, pudo reafirmar : « estar aqui, de onde nunca me ausento ».
O terceiro movimento do concerto de leitura foi o « Soneto do desmantelo azul », do pernambucano Carlos Pena Filho (1929-1960) :
Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori, as minhas mãos e as tuas.

Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.

E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.

E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.

Pesquisando sobre esse poeta, por mim até então desconhecido e já amado, encontrei um ensaio, de Lucas Tenório, intitulado “Carlos Pena Filho – O Poeta Atlântico, de que extraio este significativo fragmento:

“Tânia: recebe este livro agora mesmo composto na face azul do teu rosto, ilha de sal e de areias azuis como as nossas veias”. Carlos Pena Filho (Dedicatória do Livro Geral de seus poemas a Tânia, sua mulher).
“É lamentável que a Pena de Carlos Pena Filho ainda seja pouco conhecida de boa parte do público brasileiro), enquanto a Cal de João Cabral de Melo Neto, o maior poeta brasileiro na síntese da materialidade das coisas (Carlos maior que ele na síntese de significados íntimos), e o Armorial de Ariano Suassuna, um híbrido dos dois, tenham alcançado todo o mundo. Em conversa com Rita Amaral, outra sua admiradora, ao procurarmos uma identificação para a obra do poeta Carlos Pena, conhecido como Poeta do Azul, concluímos, atrevidamente, por chamá-lo de Poeta Atlântico, com o fito de afastar um pouco da poeira do esquecimento que se depositou sobre o que disse o homem que partiu prematuramente, aos 31 anos, em 1960. Atrevidos nós, porque julgamos que o sumo acadêmico Manuel Bandeira o cognominou de Poeta Solar, quando recambiou aquela cor para o amarelo do sol, em sua visita ao Soneto do Desmantelo Azul:
“ESCREVO ESSE NOME, e estou certo que o inscrevo na eternidade [...] Como Mallarmé, tinha o poeta pernambucano a obsessão do azul: a sua bela Maria Tânia lhe parecia ‘bela e azul’, na rosa que ele amou via, nos seios da rosa, dois bêbedos marujos ‘desesperados, sós, raros, azuis’, há uma orgia de azul no ‘Soneto do desmantelo azul’, onde acaba nascendo um sol ‘vertiginosamente azul’ (Bandeira, apud Carneiro Leão, 1999:11)”.
Inseria-se, então, na janela da leitura, o azul como signo fulcral. À leitura do poema maravilhoso, lembrei-me, imediatamente, do poeta decadentista francês Stéphane Mallarmé(1842-1898), cujo “L’Azur” assim se arremata:
Où fuir dans la révolte inutile et perverse ?
Je suis hanté. L’Azur ! l’Azur ! l’Azur ! l’Azur !

Parelha, que, trêmulo, traduzo :

« Aonde fugir na revolta inútil, perversa?
Estou pasmo. O Azul ! o Azul ! o Azul ! o Azul ! »

Reenviei, ainda, o poema à canção « Volare », do italiano Domenico Modugno (1928-1994), que inscrevi, trocando o advérbio de lugar « lassù » (lá em cima) por quà giù (cá em baixo), como agradecimento, no livro de assinaturas da Roseana Murray : « Nel blu dipinto di blu/ Felice di stare quà giù » ; ainda pensei no blue do alagoano Djavan, com o título « Azul » :
Eu não sei
Se vem de Deus
Do céu ficar azul
Ou virá
Dos olhos teus
Essa cor
Que azuleja o dia...
Se acaso anoitecer
E o céu perder o azul
Entre o mar e o entardecer
Alga marinha, vá na maresia
Buscar ali um cheiro de azul
Essa cor não sai de mim
Bate e finca pé
A sangue de rei...
Até o sol nascer amarelinho
Queimando mansinho
Cedinho, cedinho (cedinho)
Corre e vá dizer
Pro meu benzinho
Um dizer assim
O amor é azulzinho...
Até o sol nascer amarelinho
Queimando mansinho
Cedinho, cedinho cedinho
Corre e vá dizer
Pro meu benzinho
Um dizer assim
O amor é azulzinho...

À leitura do soneto azul de Carlos Pena Filho, o azul do mar fazia intermitentes silêncios, ecoando a saudade das ondas. Também dirigi meu olhar extasiado aos olhos azuis da gata Babel, que rondava nossas preguiçosas almofadas.
No terceiro movimento de nossas leitoras rodas, foi-nos apresentado o conto « Lia », de Roseana Murray, retirado de seu livro Pequenos contos de leves assombros (Quinteto, 2003), que me fez pensar, de chofre, em « Felicidade clandestina », da brasileiríssima Clarice Lispector (1920-1977), dado que não só se trata, embora de ângulos diferentes, do mesmo tema da amizade, como, sobretudo, pela tensão em torno da leitura, em que Monteiro Lobato (1882-1948) é o núcleo, gerando desejo e felicidade. No texto ceciliano anterior, falara-se das pequeans felicidades, ao passo que, nos contos de Roseana e de Clarice, tematiza-se a grande amizade em torno da literatura. A professora Maria Clara pontuou, brilhantemente, a importância do espaço no conto de Roseana : o espaço do poema, o espaço da casa, o espaço da cidade, o espaço onírico, o espaço da felicidade... De novo, o excelente Enílson lembrou que a palavra final do conto Help, canção-manifesto dos Beatles, remete, não apenas ao socorro que a protagonista Lia emite, quanto ao socorro que a narradora indicia, logo no começo do texto. Também pensei no filme Across the Universe, a mim indicado por Roseana, mas a que ainda não assisti e que tem tudo a ver com minha trajetória de vida, dado que vivi em Londres nos anos 60 e vivenciei toda a revolução musical daquele grupo inglês.
Seguindo a mais gostosa tradição de oferecer um lanche ao final de cada Roda de Leitura, Roseana, mãe em tempo integral, convidou-nos a saborear os deliciosos bolinhos de chuva, feitos pela talentosa Wanda ; culinária e literatura combinam-se maravilhosamente : os bolinhos são quitutes do Sítio do pica-pau amarelo (1920), de Monteiro Lobato.
Dispersou-se o grupo de devotos da Literatura, mas eu, primeiro a chegar, fui também o último a sair, ainda a tempo de receber um outro presente, dessa feita das mãos de Juan Arias : seu mais recente livro, La seducción de los Ángeles (Madrid : Espasa, 2009), já, como seus outros títulos anteriores, best-seller. Tive ainda tempo para usufruir a alegria de Roseana que, plena de poesia, preparava-se para ir festejar, em Teresópolis, o 88o. aniversário de sua mãe, a estilista Berta Kligerman.

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