sábado, 28 de março de 2009

Uma certa retórica homoerótica

“What is straight? A line can be straight, or a street, but the human heart, oh, no, it's curved like a road through mountains”.
Tennessee Williams, A Streetcar Named Desire
“God is gay”.
“I feel sorry for Homophobic people in the U.S.A. because they all hide every time they look in the mirror”.
Alex Carter

Para o Lico, eterno efebo!

Para o José Carlos Barcelos, in memoriam
Omnia vincit Amor


RESUMO. Considerando a retórica como a forma do discurso e como o discurso em sua forma poética, este estudo mapeia, no poema “Fábula y moraleja”, do espanhol Angel González (Oviedo, 1922- Madri, 2008), algumas figuras de retórica, que funcionam como gonzos, no gozo das significações. Estabelece-se, ainda, no espectro retórico, um contraponto com o filme Delicada relação (Yossi & Jagger), de 2002, do israelense Eytan Fox, baseado numa história real. Figuração poética e figuração cinematográfica configuram um discurso polifônico, cuja retórica aponta conceitos, preceitos e preconceitos a serem destruídos na guerra da linguagem.

Palavras-chave: Retórica. Ángel González. Eytan Fox. Homofobia.


Neologismo híbrido (do latim homo-hominis, “homem”, e do grego fobia φόβος "medo"; entendo a fatura desse neologismo como vindo da abreviatura em inglês de homosexual – homo -, com a qual se designa o homossexual), criado, em 1971, pelo psicólogo e ativista gay estadunidense George Weinberg, o termo “homofobia” (do latim homo, “homem”, e do grego fobia φόβος "medo") apareceu, em 1972, em seu livro Society and the Healthy Homosexual e indica, por sua ambígua etimologia, aversão ou discriminação contra homossexuais, ou pessoas que amam pessoas do mesmo sexo. Esse significante, no entanto, não dá conta do real significado do signo, dado que a homofobia implica atitude odiosa, agressividade, violência e, até, crime. Seria, então, um signo cínico, um eufemismo em torno de uma gravíssima questão, que não encontrou solução em nenhuma sociedade contemporânea.


Considerando a retórica como a forma do discurso e como o discurso em sua forma poética, este estudo mapeia, no poema “Fábula y moraleja”, do espanhol Angel González (Oviedo, 1922- Madri, 2008), algumas figuras de retórica, que funcionam como gonzos, no gozo das significações. Estabelece-se, ainda, no espectro retórico, um contraponto com o filme Delicada relação (Yossi & Jagger), de 2002, do israelense Eytan Fox, baseado numa história real. Figuração poética e figuração cinematográfica configuram um discurso polifônico, cuja retórica aponta conceitos, preceitos e preconceitos a serem destruídos na guerra da linguagem, onde a homofobia se apresenta em uma forma trágica.
O poema “Fábula y moraleja” (“Fábula e moralidade”), de Angel González, foi publicado em sua antologia de poesia para jovens

Dos soldados se amaban tiernamente.
Grababan en las balas las iniciales de sus nombres propios
Elegantemente entrelazadas
- quizá con un punto de cursilería.
Intentaban de ese modo llevar su amor al corazón de todos los hombres,
lo que estaban logrando
con licencia de armas,
perseverancia
y buena puntería.

Aprendí de esta historia
Que a los hombres educados en el desprecio
Hasta el amor les sirve para expresar su odio[1].

(González, 2008, p. 55)

Estamos diante de uma cena bélica, como se fora um quadro atual de Jacques-Louis David (1748-1825): o amor combate o ódio, ressaltando, portanto, o paradoxo, figura de retórica muito presente em obras de arte de todas as estéticas. Com efeito, o amor que os dois soldados sentem converte-se em ódio dirigido ao coração de “todos os homens”. Bem mais longa do que a segunda estrofe do poema, a primeira estrofe narra, faz a crônica de um amor proibido, vivido nas trincheiras. Na guerra, terreno do ódio, os jovens viviam um amor, que queriam implantar nos outros, mas através de balas mortais. Segundo o “eu” lírico”, fantasiado de narrador, eles, os amantes marginalizados na sociedade, mas integrados nas hordes militares, gravaram seus nomes e cravaram balas nos outros, tendo encontrado uma maneira de combater, com as mesmíssimas armas, a homofobia. A originalidade do poema e da narrativa fica por conta da tatuagem, da gravação, da impressão dos nomes entrelaçados nas balas que vão laçar para a morte todos os homens que estão no outro lado do campo de batalha. Também o pleonasmo estrutura esse discurso lírico-dramático, na medida em que se inscreve “amar tiernamente”, sintagma em que comparece, de novo, o paradoxo, porque seu amor converte-se em ódio, expressa-se no assassinato dos outros, na fulminação dos inimigos, reeditando o provérbio do Antigo Testamento, que reza: “Olho por olho, dente por dente”. O poema insiste no paradoxo, porque os soldados-amantes foram educados no desprezo, expressão significativa, visto que “educar” significa seguir a ética vigente, ao passo que “desprezo” remete a uma atitude de rejeição, no caso, a homofobia imperante. No interior do poema, verdadeira crônica de guerra, o advérbio de modo “tiernamente” vai rimar com outro advérbio “elegantemente”, que qualifica a arma do crime. Outro pleonasmo surge no próprio título do poema, que articula fábula e moral da história: toda fábula implica, implícita ou explicitamente, uma moral. Se o “eu” lírico não tivesse incluído uma moral evidente, qual seria a moral da história? Talvez ele receasse que o leitor não chegasse à conclusão da fábula que ele traçava. Em forma de haicai ou aforismo, o poema conclui, sem, todavia, fechar a leitura. Se, conforme enunciou Mário de Andrade (1893-1945), que, aliás, viveu de perto o drama da homofobia, cruel nos tempos do modernismo brasileiro, capitaneado por Oswald de Andrade (1890-1954, intitulou seu primeiro livro de poemas Há uma gota de sangue em cada poema (1917) -, estes versos do poeta espanhol contemporâneo jorram sangue por todos os poros, travando uma guerra contra a homofobia.

Segundo batente da porta entreaberta deste ensaio, o filme Yossi & Jagger (em hebraico: יוסי וג'אגר‎) (Delicada relação), de 2002, do israelense Eytan Fox[2] tem também como cenário a guerra, sinalizando, em nosso horizonte de leitura, a guerra retórica que se trava quando o amor não ousa e ousa, ao mesmo tempo, dizer seu nome. A fábula do poeta espanhol e a dupla amorosa do cineasta israelense duelam no campo de batalha da linguagem.
Baseado, segundo consta, numa história real, o filme Yossy & Jagger ( Delicada Relação[3]), feito, inicialmente para ser exibido na televisão, realizado com câmera digital, e totalmente falado em hebraico, relata a trágica estrutura da vida de dois jovens israelitas dos dias de hoje. Uma base militar localizada na fronteira de Israel com o Líbano abriga jovens soldados, homens e mulheres. Yossi (Ohad Knoller) é o comandante do grupo, um homem duro que mantém a todo custo sua postura rígida e a fama de mau. Jagger (Yehuda Levi), o segundo na hierarquia do quartel, tem uma personalidade mais sensível, apesar de também encarar seu trabalho com seriedade. Uma vez juntos, os dois militares vivem uma história de amor proibida que tentam esconder dos demais membros da tropa a todo custo. No entanto este esforço fica ameaçado quando a recruta Yaeli (Aya Steinovitz) se declara apaixonada por Jagger.
Tendo como objeto o amor no campo de batalha, esse filme apresenta um grupo de jovens que, ao invés de dançar, estudar e namorar, tiveram suas vidas roubadas pelo serviço militar e pela complicada situação de seu país, sobretudo para os protagonistas que, apaixonados, não conseguem viver seu amor, proibido num sistema rígido e opressor. Sem ostentar uma bandeira em arco-íris, não sendo um filme moralista às avessas, a diegese fílmica lança mão de clichês e evidencia os preconceitos que rondam e sufocam uma relação amorosa entre pessoa do mesmo sexo: dois oficiais do exército israelense, o capitão Yossi, líder de um grupo de militares num dos pontos de tensão do país – a fronteira entre Israel e o Líbano - e o soldado Lior, que , que ganhou o apelido de Jagger por ter ares de rock star; são namorados e, entre uma missão e outra, trocam beijos e carícias. O espaço da narrativa é o campo minado, onde se desenrola o romance proibido. Se não se levanta a bandeira pró-homossexualidade, tampouco se discute a guerra entre Israel e a Palestina, colocando-se em realce a paixão dos militares. A figura de retórica mais pregnante é, sem dúvida, o paradoxo, tanto porque a guerra é o sangrar do paradoxo, na medida em que se opõe à paz, como porque verifica-se um oxímoro na própria relação amorosa, vivida diferentemente pelos amantes: se, de um lado, Jagger lança-se de corpo e alma na relação, Yossi recalca-se, escamoteia-se como o uniforme militar que usa, e apresenta certo grau de homofobia, uma homofobia interna, que agride o companheiro, realmente engajado no amor, pleo qual combate, apesar da oposição do seu parceiro. Em 2005, Ang Lee produziu o belíssimo filme O segredo de Brokeback Mountain (cujo lema era “O amor é uma força da Natureza”), estrelado por Jake Gyllenhaal, e pelo pranteado ator australiano Heath Ledger, um filme que, a meu ver, muito deve a Yossi & Jagger, mesmo se a montanha sigilosa é fictícia.
Para a Natureza, não vige o paradoxo na relação amorosa entre dois rapazes; todavia, nos regimes pseudo-democráticos e ditatoriais, esse tipo de relação é inaceitável, constituindo uma oposição a ser combatida. Palestina e Israel não configuram um paradoxo, mas, na retórica da guerra, essas duas Nações têm que travar um insolúvel conflito.
"Delicada Relação" retrata de forma corajosa, genuína, divertida e às vezes até dolorosa, o complicado tema que é a homossexualidade nas forças armadas, onde o combate maior será a homofobia, interna e externa, como comprovam, infelizmente, recentes fatos no nosso País, de que nos dá conta o Prof. Jorge Coli :
A mirabolante notícia de que o Exército cercou uma emissora de TV para prender um sargento que se declarou homossexual traz ensinamentos. O Exército é uma sociedade masculina bastante fechada que exalta a força física e os valores viris. Mundo masculino de machos, favorece o homoerotismo, senão o homossexualismo. Platão escreveu que um exército composto por casais de amantes seria indestrutível porque um teria vergonha de mostrar-se covarde diante do outro, preceito que Alexandre, o Grande, ao que parece, estimulou em seus batalhões (...). Não é difícil perceber o que se esconde por trás da represália contra o Sargento. Quando o homofóbico se exprime, não fala do outro, fala de si mesmo. Isso é verdade para qualquer preconceito. O racista, o anti-semita projetam no ser que odeiam o fantasma envergonhado de si próprios, das pulsões que têm dentro de si. Quando as exprimem, é para melhor escondê-las. (Coli, 2008).
O brilhante professor da UNICAMP indica a tela “Leônidas nas Termópilas”, de Jacques-Louis David (1748-1825) datada de 1814, para ilustrar o “apogeu de delírio erótico-militar”: No centro da tela, Leônidas está nu e se prepara para o combate, enquanto soldados se abraçam « ternamente », antes de ir morrer. Realidade e ficção, fatos e arte, literatura e cinema unem-se, seja para gritar contra a homofobia, seja para entoar hinos ao amor, pois « toda forma de amar vale a pena ! ».


REFERÊNCIAS
COLI, Jorge. Corpos eróticos. In : Folha de São Paulo, caderno MAIS, 08 de junho de 2008.
GONZÁLEZ, Ángel. Antología de poesía para jóvenes. Buenso Aires : Santillana, 2008.
MUCCI, Latuf Isaias : www.fcsh.unl.pt/edtl/homocultura/homoerotismo (acesso em

http://www.yossiandjagger.com (acesso em




[1] “Fábula e moralidade. Dois soldados se amavam ternamente./ Gravaram nas balas as iniciais de seus nomes próprios/ Elegantemente entrelaçadas/ - talvez com um traço de ironia./ Tencionavam, desse modo, levar seu amor ao coração de todos os homens,/ o que estavam conseguindo/ com licença de armas/ perseverança/ e boa pontaria.// Com essa história aprendi/ Que aos homens educados no desprezo/ Até o amor lhes serve para expressar seu ódio” (Tradução livre nossa).
[2] Yossi & Jagger, Israel, 2002. Direção: Eytan Fox. Roteiro: Avner Bernheimer.
Tempo de Duração: 65 minutosElenco: Ohad Knoller, Yehuda Levi, Assi Cohen, Aya Steinovitz, Hani Furstenberg, Sharon Raginiano, Yuval Semo, Yaniv Moyal, Hanan Savyon, Erez Kahana, Yael Perl Becker, Shmulik Bernheimer. Fotografia: Yaron Scharf. Montagem: Yosef Grunfeld. Direção de Arte: Amir Pick. Música: Ivri Lider. Figurinos: Natan Elkanovich. Produção: Amir Harel e Gal Uchovsky. Site Oficial: http://www.yossiandjagger.com.

[3] O título, que o filme recebeu no Brasil remete, banalmente, a Delicada Atração (Hattie McDonald, 96), e não, de modo algum, jus à estética do filme.

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