quarta-feira, 11 de março de 2009

AMOR NA FRONTEIRA ABSURDA DA GUERRA

De uma queridíssima amiga judia – Roseana Murray -, eu, cristão-maronita, filho de pai libanês, recebi, outro dia, a indicação do filme The Bubble (2006) do cineasta isralense Eytan Fox (1964), de que eu já vira Delicada relação (Yossi & Jagger, 2002) e Caminhando na água (Walk in water, 2004), ambos os filmes com temática de amor homossexual masculino. Aliás, no congresso internacional da ABEH (Associação Brasileira de Estudos do Homoerotismo), ocorrido, este ano, na USP, apresentei um trabalho sobre identidade e homofobia, enfocando o filme Delicada relação.
The bubble ( o título original, em inglês, conservou-se no Brasil e corresponde, em vernáculo, a “A bolha”), com Ohad Knoller (Noam; protagonista, também, de Delicada relação), Alon Friedman (Yali),Daniela Virtzer (Lulu; a atriz é parecidísisma com minha sobrinha Raquel), Yousef 'Joe' Sweid(Ashraf) e com música de Ivri Líder, é, para mim, inveterado cinéfilo, um dos melhores filmes a que já assisti e, também, um dos mais cruéis, talvez o que mais me chocou, até porque apresenta, de forma escancarada, sem nenhum eufemismo, sem falso pudor, o absurdo da guerra e, no caso em tela, da guerra fratricida do Oriente Médio. O filme não explica nada, nada justifica, não se posiciona de um lado ou de outro da fronteira israelense-palestina: exibe, com todas as cores e horrores, as cenas de guerra. Mas, sem querer ser proselitista, o filme me deixa ler sua ideologia: a paz; a palavra mais recorrente no texto fílmico, além de “amor”, “sexo” (com todo um jargão obsceno e gay ) é shalom, belíssimo termo que se traduz por “paz”, mais um termo intraduzível, todavia essencial em qualquer idioma e quadrante. O título (re)fere a relativa tranqüilidade de Tel-Aviv, no contexto de um país em guerra com seus vizinhos; no entanto, percebe-se a imensa consciência política dos jovens atores. Mais do que numa bolha, vive-se na fronteira da bomba, dos homens-bomba. Sem o irritante ranço do engajamento político, a obra de Eytan Fox engaja a vida toda, com arte, beleza, sedução, como deve de ser o engajamento para a paz.

























Iniciando-se com uma cena terrível da morte, na fronteira, de um recém-nascido palestino, devida ao atraso da ambulância, retida no controle fronteiriço, o filme narra o amor, proibido, qual Romeu e Julieta em tempos de guerra, não mais familiar, mas entre famílias internacionais, entre Noam, soldado israelense, e Ashraf, jovem palestino. Apesar de todas as dificuldades e quase impossibilidades, eles vivem, intensa e abertamente, sua paixão. Em Delicada relação, eu apontara a homofobia no próprio soldado israelense (Yossi); em The bubble, a homofobia ocorre na sociedade palestina. A fim de evitar problemas para seu parceiro, o palestino volta à sua cidade; porém, o amor deles não resiste e os apaixonados voltam a encontrar-se, inclusive na morte. Cenas de flasback mostram, então, os dois amantes brincando, em sua meninice, num jardim comum, em Jerusalém, de árabes e judeus; a música, ao fundo, é a canção preferida da mãe de Noam, que morreu de desgosto, quando o jardim também se tornou uma fronteira intransponível.
A tensão insuportável da guerra encontra, às vezes, momentos de relaxamento e, até, de alegre leveza, não só nos diálogos apimentados, nas cenas eróticas, na música, israelense, estadunidense (entre as quais, a belíssima The man I love, de Cole Porter, 1891-1964, homossexual auto-reprimido) ou brasileira, inebriante, na dança, na festa de casamento; porém, o fantasma da guerra nunca se afasta, porque todos sabem (nós espectadores, inclusive) que se vive no fogo cruzado das fronteiras. É paradigmática a cena da “Rave contra a ocupação”, realizada na praia, regada a drogas, homossexualismo masculino e feminino, e a amores possíveis e impossíveis. Aqui, noto a diferença radical entre a arte de Eytan Fox e a do espanhol Almodóvar, que prima pela paródia, pelo deboche, pela irreverência, apresentando personagens gays quase caricatos. Dos filmes almodovarianos, sai-se com sorrisos ou risos; dos filmes de Eytan Fox, sai-se com o rosto crispado e molhado das tumultuadas lágrimas que escorrem no rosto siderado. No próprio filme, os personagens choram um choro preso, represado, amargo, sincero.
Filme erudito, a obra de Eytan Fox tem inúmeras referências de arte, ou intertextos, como o filme Jules et Jim (1962), de François Truffaut, cujo triângulo amoroso, ocorrido durante a Primeira Guerra Mundial, termina em tragédia, e a da extraordinária peça Bent (1979), de Martin Sherman, tornada filme, em 1997, com direção de Sean Mathias; fala-se da peça, no filme israelense, e dela se assiste à cena, talvez mais densa, quando os dois amantes no campo de concentração nazista fazem literalmente amor sem se tocarem, apenas proferindo palavras amorosas, narrando sua relação sexual. Comentando a peça teatral, Noam diz: “ Deixa a gente pensando”. Eis, para mim, o objetivo da arte, da obra de arte, do texto artístico: fazer pensar. The bubble não só faz pensar como causa dor-de-cabeça, rouba o sono, tumultua os pensamentos. Mas o coração sabe a paz sonhada.
Se a cena inaugural foi a morte, que pontua o texto fílmico todo, o epílogo soa, sutilmente, uma mensagem eterna. Comentando sobre a morte absurda dos dois amantes, um personagem afirma: “Como são estúpidas as guerras. Mas eles jamais saberão disso”. Quem são “eles”?

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