quarta-feira, 11 de março de 2009

O FEIJÃO E O POEMA: A 9ª. RODA DE LEITURA ROSEANA MURRAY

Não foi diferente das anteriores edições da Roda de Leitura Roseana Murray a 9ª. Roda, ocorrida em 29 de novembro de 2008; no entanto, como as demais rodas, foi especial e gostosamente diferente, não só pelos participantes (professores e alunos da rede de escolas públicas de Saquarema-RJ), que, a cada vez, são outros, pelos textos apresentados, sejam os contos, sejam os poemas, hauridos em fontes diversas, como pela comemoração pós-Roda, incluindo, sempre, diferenciados pratos da espetacular e corriqueira culinária brasileira. No dia 29 próximo passado, a Roda de Leitura, anunciada como a última do ano em curso, fechou-se com uma lauta feijoada. Ao chegar, uma meia hora antes do início marcado, tive a nítida impressão de estar convidado para um banquete, porque a mesa, na varanda entre o mar e o jardim, já estava posta, com talheres, pratos, flores e frutos.. Envolvido intensamente no evento primaveril, tive a certeza de estar numa reedição de uma cena de Platão, que ensinava e discutia filosofia – o tema do amor, por exemplo, - em banquetes.
Como nas demais Rodas, a 9ª. Roda – classificada com uma numeração que remete, imediatamente, à Nona Sinfonia (1824), de Beethoven (1770-1827), a sinfonia coral, uma das obras-primas do genial compositor alemão - orquestrou, ao som do mar absoluto, ali em frente, emoções e reflexões. Se a primeira apresentação, em Viena, dessa Sinfonia não pode ser regida por Beethoven por causa de sua surdez, a 9ª . Roda de Leitura teve Roseana Murray, sua idealizadora, promotora e produtora, como a maestrina e, ao mesmo tempo, a participante-mor., amorosamente atenta às leituras de todos, congregados à sua maternal volta. .Aliás, me chamou a atenção, em todas as edições, o f ato de as pessoas todas ficarem atentíssimas à fala inaugural, quando nossa Poeta tece considerações sobre educação, leitura, texto, cultura, enfim, não só no âmbito de nossa Saquarema quanto como prática de vida, como exercício do dia-a-dia, como disciplina cotidiana.. Como emblema dessa atenção amorosa, minha já provecta memória elege dois lindos meninos-gêmeos, - Tiago e Eduardo -, enamorados das palavras que, orvalho de uma rosa de desertos e jardins, saem translúcidas da boca da Roseana; assíduos freqüentadores das Rodas saquaremenses, os irmãozinhos chegaram, discretamente, àquela que já designo “Casa da Poesia” com um mimo para a anfitriã, uma obra feita , “uma teia de aranha” (certamente metáfora do texto), com inspiração nos apetrechos indígenas locais, por sua mãe; com um gesto mais que poético, Roseana instalou, incontinenti, numa coluna verdejante da varanda, o artefato trazido por nossos adoráveis Cosme e Damião vivos (como notei em crônica anterior, Tiago e Eduardo fizeram, justamente no dia 27 de setembro, sua primeira aparição nas Rodas de Leitura; nessa data, o Brasil inteiro festeja os santos -imãos-gêmeos).
O texto de abertura foi, de novo, extraído de um jornal , da autoria de Joaquim Ferreira dos Santos; mas Roseana Murray nem leu o título do ensaio ou crônica, que, entre suas mãos emocionadas, serviu de apoio metafórico à sua peroração. De início, enunciou que acordara às 3h30 e já, às 4hs, acendera, com Wanda, sua inseparável assessora, e Samuel, o porteiro sorridente das Rodas de Leitura, o fogo no fogão de lenha, que , contracenando com a luz das estrelas da madrugada, anunciaria o sol daquela outra manhã maravilhosa. Foi a delicadeza o tom do discurso de abertura, uma delicadeza que diz respeito, tanto à Natureza que “está existindo”, quanto à solidariedade, não apenas em tempos de crise e de catástrofes quanto no “rame-rame”dos dias.
Sempre fiquei curioso quanto ao conto-corpus da leitura; pude, até, sugerir um ou outro conto, como “Famigerado”, de Guimarães Rosa (1908-1967) e “Felicidade clandestina”, de Clarice Lispector (1920-1977); dessa feita foi imensa a surpresa da escolha de Roseana: tomou ela o conto “O teatro de sombras de Ofélia” (1988) ,do livro A escola de magia e outras histórias, de Michael Ende (1929-1995). Na qualidade de leitor, comum e especializado, ao mesmo tempo, o conto foi uma imensa surpresa para mim, que tenho problemas crônicos com a tradução, até porque eu mesmo sou tradutor e sinto as agruras e as traições de toda tradução. Vivo dramaticamente o oxímoro de que nada é traduzível e tudo é tradução. Mas, sem o crucial processo da tradução, o que seria da circulação do saber? Não fossem, por exemplo, os árabes (Averroes ,1126-1198 , à frente de todos), que traduziram toda a filosofia antiga grega, o que seria da filosofia ocidental? Com sua voz, naturalmente empostada ( “leitura dramatizada”, diria, a posteriori, o poeta Antônio Francisco Alves Neto, o nosso familiar Chico), Roseana leu o conto, que levou às lágrimas alguns participantes; eu mesmo, encantado com o texto, por seu ritmo, suas metáforas, sua alegoria gestáltica e, sobretudo, por sua voltagem metalingüística, que prioriza, o tempo todo, a linguagem da poesia, encenada no teatro , seja um teatro de sombras, seja um teatro de luzes da ribalta, seja um lusco-fusco, emocionei-me, intensamente, expressando, com sorrisos, a felicidade de poder usufruir da literatura, mãe de todas as artes. Pudemos, também, entusiamados, ouvir o testemunho (perdão pela palavra “testemunho”, que pode fazer pensar em igrejas, mas recuperemos , pelo amor dos deuses todos e de todos os Orixás, a idéia da arte como uma religião sem preconceitos nem dogmas nem cobranças, a verdadeira religião no sentido de ligar as pessoas ao que melhor elas têm em si e entre si e ao Cosmos) de Juan Arias, escritor e jornalista, nosso anfitrião mais que discreto, e que, convocado a falar por Roseana , relatou que entrevistou a Michael Ende, dramaturgo que viveu na Itália, era apaixonado por sua esposa, a cuja morte não pôde sobreviver, e tem seu livro Momo (1972), que virou filme, em 1986, traduzido em 24 idiomas. O conto perfeito arrematou, perfeitamente, a 9ª. Roda de Leitura Roseana Murray, e cada um pôde, naqueles momentos sagrados, se sentir, no palco do mundo, Ofélia, seja despertando vocações, seja reinventando formas de amar, seja recriando figuras da arte, seja tendo consciência das coisas mínimas e imprescindíveis, seja assumindo seu lugar, seja agarrando , apesar de todos os pesares, sua “vez e voz”.
Representando mais uma surpresa das Rodas, o grupo de teatro, sob a batuta do Prof. Robledo Rocha , da Escola Luciana Santana Coutinho, no Porto da Roça, encenou uma peça, montada pelo diretor a partir de duas crônicas de nosso maior poeta, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), “Alma perdida” e “Excesso de companhia”, peça intitulada “Mais vale uma alma na mão do que duas anjas loucas”, obra premiada pela Petrobrás no evento “Leia, Brasil”. Se, à leitura do conto “Teatro de sombras de Ofélia”, esbocei sorrisos, dei boas gargalhadas assistindo à apresentação da gostosíssima e bem interpretada paródia. Era a apotesoe da apoteose, que articulava magicamente as sombras do conto, que figurava o teatro, com as sombras do teatro ali à nossa frente.
Antes de nos congregarmos em torno da mesa da feijoada, pudemos, ainda, ouvir a Francisco Antônio Alves Neto , autoridade local, que sempre prestigiou, singelamente, todas as edições da Roda de Leitura, instruindo-nos sobre a vinda à Região dos Lagos do biólogo inglês Charles Darwin (1809-1882), que, no ano de 1832, percorreu, com fins de pesquisa, nossas cidades lacustre-marítimas, inclusive Saquarema, que vai lhe dedicar uma praça; marcando a ilustre visita, inaugurou-se, na Região dos Lagos, o “Caminho Darwin 1832”.
“Você tem fome de quê?”, pergunta a canção do grupo musical paulista Titãs. Ao meio-dia de 29 de novembro de 2008, alimentados de poesia e teatro, já tínhamos apetite para a feijoada completa., coroada com um delicioso doce de coco, feito com o coco do quintal, colhido e descascado por Samuel. Sem ser gourmant, mas semiólogo, sempre me perguntei por que “feijoada completa”; da feijoada há várias versões: a feijoada dietética, a feijoada light, a feijoada de soja, a feijoada com feijão branco (o francês cassoulet). Em Saquarema, sob a égide de Roseana Murray, pudemos saborear a feijoada realmente completa, porque com poesia: a poesia da acolhida (fico extremamente grato por poder conviver com escritores de alto nível intelectual e humano e ser testemunha fervoroso de que eles abrem, com generosidade incrível, seu coração e sua casa a pessoas da comunidade), a poesia dos textos, a poesia dos gestos, a poesia da companhia, a poesia dos encontros e reencontros. Fica a poesia da saudade. Ad perpetuam rei memoriam.

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